Literatura | Reportagens

Davi Koteck e Luiza Casanova: poesia e amizade a quatro mãos

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Davi Koteck e Luiza Casanova: poesia e amizade a quatro mãos Luiza Casanova e Davi Koteck. Foto: Vitor Necchi

Prática corriqueira em gêneros textuais como a composição de letras de música, a escrita a quatro mãos é incomum na literatura. Afinal, como conciliar estilos e sensibilidades de pessoas diferentes em uma mesma obra? Quais afinidades são necessárias para uma autoria compartilhada? São perguntas que emergem da leitura de Talvez Nós Dois Tenhamos Pensado na Mesma Pessoa (7Letras), que reúne poemas dos escritores Davi Koteck e Luiza Casanova.

Antes das primeiras páginas de trocas poéticas, a dupla informa que “os poemas dele são primeiro, seguidos pelos dela e depois os dele e depois os dela e assim por diante”. À medida que o livro avança, no entanto, a sintonia dos versos estabelece pontos de diálogo, tornando menos importante a indicação de quem escreveu o quê. Um universo compartilhado ganha forma, convidando os leitores a entrarem na conversa.

Mas se engana quem imagina uma espécie de frescobol de palavras entre dois poetas. Como aponta a escritora Marcela Dantés na orelha do livro: “É como se fosse um acidente. É como se fossem duas pessoas dançando bem ali, no meio do acidente. Os pés descalços, porque se perderam os sapatos, pisando os cacos de vidro espalhados no asfalto, sangrando no asfalto e um pouco aqui, também, nessas páginas”.

Ainda que os textos sejam convergentes em grande medida, o que Talvez… apresenta é um conjunto de fragmentos. “escrever um poema é olhar um espelho / quebrado / e juntar pedaços / em lugares que não encaixam”, definem em dado momento os autores, que se conheceram em 2018 na oficina de escrita criativa ministrada por Luiz Antonio de Assis Brasil.

“Sempre houve uma identificação muito grande entre nós. Eu imitava os textos que a Luiza me mandava, e falávamos sobre um dia escrever um livro juntos”, conta Davi, 27 anos. “Por ser um processo a quatro mãos, tudo ficou um pouco mais divertido. Os poemas conversam muito em termos estéticos, de ritmo e imagens”, completa o autor dos contos de O que Acontece no Escuro (Editora Taverna) e do livro de poemas Todo Abismo É Navegável a Barquinhos de Papel (7Letras) – relembre a entrevista.

Davi Koteck e Luiza Casanova. Foto: Tiago Souza de Souza

Luiza destaca que, no começo da amizade, a prosa predominava nas trocas com Davi. Aos poucos, os dois se aproximaram da poesia e intensificaram a correspondência poética no ano passado. “Parece mentira, mas as coisas foram acontecendo muito naturalmente. Em abril de 2022, começamos a nos responder pra valer. Em julho, o livro estava fechado. Nos mandávamos e-mails e pegávamos algo da temática do poema do outro, ou uma palavra, e era incrível como os poemas se combinavam de uma forma muito impressionante”, conta a escritora, que tem 33 anos, é professora de literatura em Santa Maria e já publicou a novela Tempo Embalado para Apodrecer (Maria Papelão).

“As imagens poéticas e do mundo mexem com a gente de um jeito semelhante, e nos impressionamos com coisas parecidas. Às vezes, brincamos que talvez a gente seja a mesma pessoa”, completa.

Uma das primeiras afinidades literárias identificada pelos autores é a obra de Michel Laub, cujo livro Longe da Água foi tema da dissertação de mestrado de Luiza. Davi observa que “embora não seja poesia, a escrita do Laub talvez seja nossa principal referência em termos formais. Ele usa imagens e recortes de olhares que às vezes parecem não se relacionar, mas que no todo adquirem um sentido maior”, explica o escritor, traçando um paralelo com o mosaico de Talvez….

A poesia brasileira contemporânea é outra referência de Luiza e Davi, que citam nomes como Ana Guadalupe, Maria Isabel Iorio, Moema Vilelaleia a entrevista – e Marília Garcia entre suas autoras preferidas.

No momento, em paralelo às atividades docentes, Davi escreve em prosa, enquanto Luiza segue dedicada à poesia. Eles mantêm a correspondência, ainda que sem coautorias no horizonte. “A gente rouba textos um do outro. Ele me escreve algo no WhatsApp, e eu digo ‘perdeu, agora essa frase é minha’”, brinca Luiza. Segundo Davi, os processos de ambos seguem se embaralhando. “Tudo que eu escrever agora vai ter muito da Luiza, tá tudo misturado.”

Leia dois poemas de “Talvez Nós Dois Tenhamos Pensado na Mesma Pessoa”:

Vou escrever um poema para você
Ou para a minha avó
Que está prestes a morrer
Que não lembra de mais ninguém
Que tem uma boneca de estimação
Que voltou a ser uma criança
Que mija nas calças
E acha que fui colega dela no internato para meninas
Que não reconhece a minha cara em fotos antigas
nem se eu berrar
Nem se eu sair correndo de dentro da foto
E me sacudir como um boneco de posto de gasolina
Olha aqui
olha pra mim
é urgente.
Eu não me pareço com ninguém
Você nunca me viu em lugar nenhum
Minha avó não lembra mais de mim
Nem diferencia um filho de um pastel de queijo
Mas o Alzheimer dela é diferente do seu
Você se lembra você sabe que sim
Se você se esforçar um pouquinho
Você vai sentir de novo quase a mesma sensação
A minha avó já esqueceu de tudo
Ela está no começo do mundo e
Às vezes
Eu tenho inveja do que ela esqueceu.



Quando não durmo
penso no teu rosto
como uma imagem ao contrário
Não a memória
mas também nada inventado
uma rotação esférica, infantil
que você não sabe
se aconteceu:
A criança
entre os guarda-sóis da Skol
que se perdeu ao jogar a lata de Fruki no lixo.
O dia em que o teto da camionete do meu pai desabou na chuva
e tivemos que segurar
durante a viagem para Garopaba.
O cheiro de mofo, as coisas úmidas
velhas por dentro, meu braço como uma peça de lego
Também não sei se disseram ou se vi num filme
que no fim sempre sabemos do que vamos morrer.
Meu cachorro, por exemplo, morreu envenenado na praia
porque comia as carcaças de peixe que via pela frente.
Minha avó, segundo a família, morreu de desgosto.
E se eu pensasse na minha morte, também saberia a causa.
É a terceira semana que não consigo dormir
porque não lembro como você é

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