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Entrevista: Alexandra Lucas Coelho lança novo livro em Porto Alegre

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Entrevista: Alexandra Lucas Coelho lança novo livro em Porto Alegre

A escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho começa neste domingo (8/3), em Porto Alegre, a turnê de lançamento no Brasil de Cinco Voltas na Bahia e um Beijo para Caetano Veloso (publicado pela editora Bazar do Tempo). O evento será realizado às 17h, na Livraria Baleia, numa conversa com a livreira Nanni Rios e a escritora Moema Vilela.

O novo livro nasce de uma declaração de Caetano Veloso. Ao elogiar as publicações de Alexandra dedicadas ao Brasil, o compositor disse que sentia falta de uma presença maior de menções à Bahia. Atenta aos comentários sobre sua produção, Alexandra resgatou memórias de suas passagens pelo estado nordestino e escreveu Cinco Voltas…. A obra completa uma trilogia iniciada com Vai, Brasil (crônicas escritas entre 2010 e 2013) e o romance Deus-dará (lançado no Brasil em 2019), cujo título completo tem o sugestivo adendo Sete dias na vida de São Sebastião do Rio de Janeiro, ou o apocalipse segundo Lucas, Judite, Zaca, Tristão, Inês, Gabriel & Noé.

Com trajetória no jornalismo, Alexandra cobriu zonas de conflito e foi correspondente em Jerusalém e no Rio de Janeiro – a escritora viveu no Brasil entre 2010 e 2014 e desde então retorna para passar temporadas no país. Já publicou 12 livros – seis de crônicas e reportagens de viagens, quatro romances e dois infanto-juvenis. Seu romance de estreia, E a Noite Roda (2012), rendeu-lhe o Grande Prêmio da Associação Portuguesa de Escritores.

Em entrevista exclusiva que você lê a seguir, Alexandra fala sobre Cinco Voltas…, suas experiências no Brasil entre 2010 e 2020 – “uma década épica, alucinante, lancinante” – e suas reflexões sobre a história que une o país a Portugal: “minha visão da história portuguesa, das centenas de anos de colonização, do complexo universo ameríndio que existia nesse território, dos milhões de pessoas que Portugal tirou de África, tudo isso mudou ao viver no Brasil”.

> Como você recebeu a provocação de Caetano Veloso sobre a Bahia e como foi o processo de escrita de Cinco Voltas…?

Eu não diria provocação… No meio da sua leitura, atenta e generosa, Caetano apenas comentou que faltava Bahia nos meus livros brasileiros. Disse-o quando leu Vai, Brasil, colectânea de crónicas entre 2010 e 2013 (que não tem Bahia porque não fui lá nesse intervalo de tempo). E repetiu isso em 2019, ao ler Deus-dará, um romance situado no Rio de Janeiro, onde há referências à Bahia, mas sobretudo históricas.

Aí, dessa segunda vez, em julho passado, fui para casa a pensar nas palavras de Caetano, no fim de semana seguinte tive a ideia deste livro, com título e índice, e comecei a escrevê-lo. Para responder a uma falta, totalmente verdadeira, e como retribuição a um artista com quem tenho – temos – a sorte fantástica de coincidir no planeta. É o artista vivo mais importante para mim desde o começo da adolescência. Então, antes de tudo, Cinco Voltas… é isso, uma pequena retribuição. Eu não o teria escrito sem Caetano.

> Além de inspiração para abordar outras paisagens brasileiras, Caetano se torna um personagem do livro. Nos conte um pouco sobre a presença dele – e da música brasileira – na publicação.

Caetano permeia todo o livro (embora fisicamente só apareça uma vez). Digo no começo que não contava escrevê-lo, e como isso aconteceu. O leitor sabe, assim desde a primeira página, de onde vem o livro, o que o desencadeou e que Caetano atravessará as cinco voltas. A primeira tem a memória de como comecei a ouvir Caetano, e ele trouxe, pelas canções, a família Veloso, Santo Amaro, Salvador, a Bahia, o Brasil. De Porto Alegre, agora, o atentíssimo Fernando Ramos, curador da Festipoa Literária, disse-me que contou 61 músicas no livro (Deus-dará deve ter centenas!).

E rapidamente descobri que Caetano estava duplamente certo. Eu tinha de escrever Cinco Voltas… porque faltava Bahia, mas também para atar uma década de ligação quotidiana ao Brasil. Com pontas muito de trás, quando o Brasil entrou na minha vida com Caetano, João Gilberto, Jorge Amado… Aliás, todos baianos.

> Depois de um livro de crônicas (Vai, Brasil) e de um romance (Deus-dará), em Cinco Voltas… você apresenta uma mescla de ensaio, crônica e reportagem, correto? Como se deu esse percurso por diferentes tipos de narrativas?

Cinco Voltas… é sobretudo memória de viagem. Foi escrito de raiz em menos de dois meses porque parte daquelas coisas estavam a marinar há muito. Não tem reportagem, nunca escrevi reportagem na Bahia. Muito lá atrás, em 1997, eu estivera 24 horas em Salvador como repórter de rádio mas tinha uma vaguíssima memória disso, como conto na primeira volta do livro. De resto, nunca mais estive na Bahia como repórter. Todas as voltas seguintes lá são posteriores ao romance Deus-dará, de 2016, e se relacionam com ele.

A segunda volta foi depois de o publicar, para fazer pelos meus próprios pés a viagem que um dos personagens anuncia que fará à Bahia, caminhando através da primeira praia onde indígenas avistaram um português e vice-versa – essa praia chama-se Itaquena, a sul de Porto Seguro, e esse português era um capitão de Cabral, chamado Nicolau Coelho. A terceira volta foi para falar de Deus-dará em Salvador, e a quarta volta foi quando Deus-dará saiu no Brasil, e fui lançá-lo. À quinta volta chamo promessa porque é a que está em aberto para tudo o que falta.

De todas estas voltas eu não tinha sequer uma nota sequer, nenhum caderno. Apenas fotografias. Então, ao contrário do que aconteceu com os meus livros anteriores de viagem, em que os périplos foram feitos pensando já que os ia escrever, aqui tratava-se de reconstituir a memória de viagens já feitas, e sem intenção de serem escritas. Uma experiência de escavar a memória – com a ajuda preciosa dos amigos baianos.

A única coisa que eu escrevera e enviara da Bahia tinha sido uma sequência de quatro crónicas na virada do ano 2016-17, porque ainda era cronista do Público, e escrevia de onde estava, dever semanal. Então incluo-as como recortes de jornal dentro do livro, anexos entre as páginas, diagramadas até de forma diferente. Achei depois uma quinta crónica mais antiga sobre Jorge Amado, que também incluí.

De resto, o livro é todo escrito entre julho e setembro de 2019, por ordem cronológica das minhas idas à Bahia.

> Como você enxerga o conjunto das três publicações? É possível considerá-las umas trilogia?

Sim, não a planeei como tal, mas acaba por ser uma trilogia: três livros dedicados ao Brasil, cada um com a sua estrutura. E Cinco Voltas… remata os anteriores. Haverá duas leituras possíveis. A que se pode ter de cada livro, e eles são autónomos, não necessitam dos outros. E a que resulta de ler os três, formando um puzzle que só existirá assim.

> Protagonistas nos seus dois últimos livros, os estados da Bahia e do Rio de Janeiro têm uma presença marcante da colonização portuguesa. Você tem planos de se relacionar com – e escrever sobre – outras regiões do país em que esse legado talvez não seja tão evidente?

Vai, Brasil tem várias outras partes: bastante Amazónia, São Paulo e Minas, também Maranhão, algo de Rio Grande do Sul, Brasília, Curitiba… E como correspondente no Brasil, de 2010 a 2014, viajei o que pude (as reportagens não foram reunidas em livro). Essa experiência mais geral do Brasil ecoa também em Deus-dará. A minha visão do país e desse romance não seria possível sem a experiência de duas viagens à Amazônia, ou estadias em Pernambuco, em Minas… presentes em personagens, ou de outro modo. Partes extensas do livro foram escritas no remoto interior das montanhas mineiras.

> Seu livro anterior, Deus-dará, foi muito elogiado pela sensibilidade com a qual você aborda o país, os brasileiros, os cariocas e o nosso convulso momento histórico recente. Um olhar, aliás, que também se percebe em crônicas suas que repercutiram bastante por aqui nos últimos anos. Como você se sente ao ser considerada uma intérprete do Brasil?

Intérprete, não (olha o peso)! É algo em parte biográfico, um encontro na vida, ir dando conta disso, organicamente. Foi uma decisão minha, ir morar para o Brasil como correspondente, depois de passar anos a escrever sobre regiões colonizadas por outros países (por exemplo, Oriente Médio, México). Quis morar no maior território colonizado pelo país onde nasci, ser atravessada por essa experiência quotidiana, a herança presente do passado, e como se projecta no futuro. Isso foi deliberado, bem como as possibilidades de uma língua que é a minha e ali encontra tantas ramificações. Mas eu não tinha noção à partida, claro, de quanto isso seria transformador, alteraria o meu olhar sobre o mundo, a história, a forma como o futuro se decide aqui. E naturalmente transformador da forma como olho o país de onde venho.

A identidade está em movimento, acredito. É bom saber de onde vimos, saber que isso implica uma história, uma consciência. Mas vamos sendo alterados pelo que vivemos, e somos nós que decidimos o que fazer com isso, cada um. Essa responsabilidade – para onde vamos – é, tanto quanto possível, nossa. Responsabilidade e libertação. Escrever, aliás, é sobretudo um trabalho de libertação, pelo máximo possível de vida. De movimento, de transformação, contra tudo o que nos amarra à partida, todas as contingências com que vivemos. De nos tornarmos quem precisamos de ser. O prefixo trans, que se aplica à vida como à criação artística, literária: atravessar os géneros.

O que fazer com o passado, e como transformar esse passado em mudanças no presente, no futuro: é o que nos cabe. E não há outros, estamos todos juntos neste planeta apocalíptico.

> Você testemunhou anos de euforia e de desencanto dos brasileiros ao longo da última década. Como foi presenciar esses sentimentos tão intensos e diversos? E como é, especialmente no momento atual, ser uma espécie de mediadora do país para os europeus?

Que mediadora, gente (risos). Nem ninguém pode mediar o Brasil! Cheguei ao Rio de Janeiro para morar em 2010, fiquei até 2014, e desde então tenho voltado por temporadas. 2010-2020, uma década épica, alucinante, lancinante na vida do Brasil. Em tudo o que vivemos podemos puxar raízes que vão longe. Vão à ditadura, e antes, aos alicerces do Brasil. É uma longa história da violência, incluindo a violência primeira sobre os corpos das mulheres. E uma longa história de resistência, desde os povos ameríndios sobreviventes, passando pelos quatro a cinco milhões de africanos levados para o Brasil, até cada pedaço de morro, de asfalto onde alguém esquente um pandeiro, movimente um cavaquinho, ou os seus próprios pés alados. O Brasil é uma imensa asa, uma imensa arte diária sobre todos esses cacos, esses monstros, essa morte. A beleza que tanta gente nesse país cria apesar de tudo, e do nada, a magia que esse país é no mundo, isso não se acaba, e ninguém acabará com ela.

> Em sentido inverso, ao viver tanto tempo aqui, você teve um contato mais íntimo com o legado português, desde questões culturais que seguem presentes até às consequências da colonização. Recentemente, por exemplo, você celebrou nas redes sociais o anúncio do projeto arquitetônico eleito para abrigar o primeiro memorial de Lisboa em homenagem às pessoas escravizadas. Como é enxergar os portugueses, Portugal e a Europa – de outros tempos e de agora – desde o “além-mar”?

A minha visão da história portuguesa, das centenas de anos de colonização, do complexo universo ameríndio que existia nesse território, dos milhões de pessoas que Portugal tirou de África, tudo isso mudou ao viver no Brasil, e quando depois passei meses em Portugal só a estudar, antes de terminar a escrita de Deus-dará. Foi aí, cruzando a história desde os séculos XV-XVI com antropologia contemporânea, com arqueologia, com a experiência vívida da Amazônia, de todas essas bifurcações que o passado emergiu como algo transformador. Não algo que pode ser mudado, mas algo que pode mudar o futuro. A história do futuro está escrita nele, cabe-nos lê-la, fazê-la.

Em mais de uma página de Deus-dará os dois protagonistas portugueses (cinco são brasileiros) falam sobre a dificuldade que Portugal tem de lidar com a sua história, de se deixar mudar. E falam explicitamente na ausência de um memorial que homenageie os escravizados e os povos indígenas dizimados. Foi muito simbólico para mim que o primeiro (e quase único) debate para que fui chamada depois de o romance ser publicado em Portugal, no fim de 2016, tenha sido a convite da Djass – Associação de Afrodescendentes. Depois a Djass concorreu com a ideia do memorial ao Orçamento Participativo de Lisboa, em que as pessoas podem votar nos projectos que querem ver construídos, e esse projecto foi eleito. Agora em 2020 foi possível votar na proposta concreta de três artistas africanos/afrodescendentes. E vamos enfim ter o Memorial diante do Tejo, com um centro de interpretação junto.

Devíamos isto aos mortos, e devemos isto aos vivos, todos os descendentes dessa história, que estão no Brasil, como em Angola, em Moçambique, na Guiné-Bissau, em Cabo-Verde, em São Tomé. E estão muito na periferia sobretudo de Lisboa, em números que não conhecemos porque continua a não ser possível recolher dados étnicos. E vivem situações de racismo entranhado, também institucional, que Portugal continua a querer desmentir, e com as quais terá de lidar, com mudanças na lei, com políticas públicas. É para todas estas pessoas, por todos nós, que convocar a história é um gesto do presente e para o futuro. Tal como os judeus exterminados pela Inquisição em Portugal foram homenageados no centro da cidade, e muitíssimo bem.

Mas falta ainda um pedido de desculpa dos responsáveis institucionais pelos milhões de africanos escravizados, um gesto mais amplo de reconhecimento institucional – porque o memorial que agora vai ser erguido foi uma iniciativa cidadã. Tal como falta homenagear publicamente, com um gesto em Lisboa, antiga capital esclavagista do mundo, os povos ameríndios. Falta o memorial desse genocídio. Há muita história para encarar, muito presente invisível, todo o futuro por fazer.

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