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Jeferson Tenório: “Não se resolve o racismo com bala de prata”

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Jeferson Tenório: “Não se resolve o racismo com bala de prata” Jeferson Tenório, autor de "O avesso da pele" | Foto: Carlos Macedo/Divulgação Companhia das Letras

“Até o fim você acreditou que os livros poderiam fazer algo pelas pessoas. No entanto, você entrou e saiu da vida, e ela continuou áspera.” Reflexões como essa, do personagem Pedro, endereçadas ao pai – um professor de literatura negro, morto pela polícia –, compõem O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, lançado em agosto pela Companhia das Letras. O romance é o terceiro do escritor, que já publicou O Beijo na Parede (Sulina, 2013) – eleito Livro do Ano pela Associação Gaúcha de Escritores – e Estela sem Deus (Zouk, 2018).

“Minha intenção foi a de construir um narrador que acessasse a vida íntima do pai, o máximo que pudesse, como uma forma de restituir uma subjetividade solapada pelo Estado e pela polícia, em função da cor da pele”, conta o autor, nascido no Rio de Janeiro em 1977 e, desde os 13 anos, radicado em Porto Alegre.

Capa de “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório

Na capital gaúcha, Tenório graduou-se em Letras, integrando o primeiro grupo do programa de cotas raciais implementado pela UFRGS, onde mais tarde se tornou mestre em literaturas luso-africanas com dissertação sobre a obra do moçambicano Mia Couto. Atualmente, além de escritor, é professor da rede pública de ensino e doutorando de teoria literária pela Escola de Humanidades da PUCRS.

“Ele não faz turismo, safári social, na desgraça geral do país, não faz da crítica à desigualdade um truque, um atalho apelativo e barato, panfletário, para ter mais aceitação, reconhecimento. Estamos diante de um escritor que, correndo todos os riscos, sabe arquitetar uma boa trama e encantar o leitor”, afirma o escritor Paulo Scott, ao apontar Tenório como “uma das vozes mais potentes e estilisticamente corajosas da literatura brasileira contemporânea”.

Na entrevista a seguir, o autor de O Avesso da Pele fala sobre seu interesse em abordar as subjetividades de personagens negros, a futura adaptação da obra para o cinema e as recentes discussões em torno do racismo estrutural impulsionadas pela Covid-19 e pelas mobilizações antirracistas.

“Creio que a pandemia acelerou um debate que mais cedo ou mais tarde chegaria de maneira mais contundente. As redes sociais têm ajudado nesse sentido, mas é preciso tomar cuidado para não acharmos que está tudo resolvido agora porque o debate está em evidência”, pondera Tenório.

Confira a entrevista com o escritor.

Em conversa virtual recente promovida pela Companhia da Letras, você ressaltou o interesse em abordar as subjetividades dos personagens de seus livros diante de contextos racializados. Como essa perspectiva vem sendo explorada ao longo da sua trajetória como escritor e como ela se dá em O Avesso da Pele? 

Ao terminar O Avesso da Pele percebi que havia dado continuidade ao meu projeto literário de contar a trajetória de pessoas negras em diferentes idades, dentro desse trânsito entre Rio de Janeiro e Porto Alegre. Neste sentido, meus personagens são marcados pelos efeitos do racismo. Em O Avesso… minha intenção foi a de construir um narrador que acessasse a vida íntima do pai, o máximo que pudesse, como uma forma de restituir uma subjetividade solapada pelo Estado e pela polícia, em função da cor da pele. Por isso a minha preocupação em não transformar o personagem Henrique [pai do protagonista, Pedro] num exemplo de heroísmo. Quis um personagem contraditório, ansioso e, por vezes, incapaz de agir. Um tipo de narrativa que conferisse existência a um homem negro morto por uma ação policial.

Talvez O Avesso… tenha sido o livro em que mais tenha tornado essa intenção mais evidente. Além disso, quis dar uma densidade dramática que, de certo modo, se aproximasse de Hamlet, do Shakespeare. Pedro não quer uma vingança dos assassinos do pai, pois se há uma vingança em O Avesso… é a de recuperar um afeto perdido em meio à barbárie do racismo. 

Tendo em vista os debates recentes sobre o racismo estrutural no Brasil e no mundo, em que medida a questão das subjetividades de pessoas negras vem sendo abordada, na sua opinião? Você percebe alguma atenção maior a esse aspecto, ainda que minoritária, nos discursos que têm circulado na mídia e nas redes sociais, ou as experiências de vidas negras seguem, de modo geral, invisibilizadas?

Olha, desde que me tornei professor, no início dos anos 2000, eu sentia que um dia escreveria sobre essa experiência como docente. Com o passar dos anos vi que, sendo um professor negro, isso ganhava uma outra dimensão. Até que em meados de 2016, após ter sofrido uma abordagem policial, achei que deveria começar O Avesso….

Mas veja, as pessoas entram muito nessa ideia de que o debate racial está em evidência agora no Brasil. A questão é: está em evidência para quem? Para uma parcela branca, de classe média pode ser mesmo. Mas para mim e para maioria das pessoas negras, o racismo estrutural sempre esteve em evidência. Se meu livro saísse em 2024, por exemplo, ele seria atual, infelizmente atual. A questão racial não foi resolvida no Brasil. E me parece que está longe de ser.

Temos a sensação de estarmos avançando na sociedade neste sentido, mas é uma sensação classista e branca. O que o pensamento branco quer, na maioria das vezes, é uma solução rápida e fácil para o racismo. Querem um antídoto, uma pílula. Alguns ficam satisfeitos lendo manuais antirracistas ou autores negros. Ok, isso é importante. Mas não só. Chegamos ao ponto de achar que a última coisa que a uma pessoa branca pode fazer para ser antirracista é ceder seu lugar de privilégio. Do tipo: “Tá aí meu lugar, se vira agora”.

Estou radicalizando para mostrar o óbvio: não se resolve o racismo com bala de prata, nem com soluções fáceis. O exercício é cotidiano. Rever posicionamentos racistas faz parte do processo. Entender que o racismo é complexo e que possui muitas camadas é fundamental e ético. Ceder espaços é importante, mas não é suficiente. Então respondendo sua pergunta de maneira mais objetiva, creio que a pandemia acelerou um debate que mais cedo ou mais tarde chegaria de maneira mais contundente. As redes sociais têm ajudado nesse sentido, mas é preciso tomar cuidado para não acharmos que está tudo resolvido agora porque o debate está em evidência. 

Ao comentar a sua tese de doutorado, em entrevista à Parêntese, você falou da sua investigação sobre figuras paternas nas culturas africanas e ocidentais e suas representações na literatura. O Avesso… reverbera algo dessa pesquisa?

Penso que sim, mas de maneira não tão direta e consciente. Tenho mergulhado na representação paterna e nas suas diferenças entre a literatura portuguesa contemporânea e as luso-africanas. Em minhas leituras iniciais pude perceber algumas mudanças nessa representação, pois enquanto o pai europeu, ocidental, possui um caráter mais autoritário, trágico, causador de traumas, o pai africano apresenta uma representação menos central na constituição familiar. O pai, ali, me parece mais coletivo, mais horizontal e mantém uma elo com as questões da ancestralidade, isto é, o pai morto é um pai que participa da vida dos vivos. Deste modo, creio que meu personagem, Henrique, possui algumas características desse pai mais africano, tomando o cuidado de não romantizá-lo, nem estereotipá-lo, mas apresentar um pai que fugisse dessa figura opressora ocidental.

Agora falando da mãe de Pedro, Martha, outra figura importante no livro. Poderia nos contar um pouco sobre essa personagem?

Martha é uma espécie de avesso do personagem Henrique, eu precisava de alguns antagonismos para deixar a história mais complexa. Embora ambos tenham a vida marcada pelo racismo, eles têm trajetórias diferentes, visões diferentes, o que depois irá se refletir no relacionamento deles. Acredito que contar a história do pai é também contar a história da mãe. Não quis colocá-la apenas como coadjuvante, mas como uma personagem que atua e interfere na vida familiar. Além disso, Martha também se desloca para outro estado, que é Santa Catarina. Um lugar em que as questões raciais também não foram resolvidas e que também revela um racismo mais específico sofrido por mulheres negras.

Como você recebeu as notícias da compra dos direitos de adaptação do livro para o cinema e do interesse pela tradução da obra, logo na etapa inicial de lançamento e divulgação de O Avesso…?

Fiquei alguns dias sem dormir, porque as notícias chegaram todas meio juntas. É uma sensação muito boa e ao mesmo tempo estranha, pois quando estamos naquele processo de criação e passamos por todas aquelas dificuldades que a escrita impõe, você não imagina que alguma coisa criada por você possa tomar essas proporções. Aí você lembra das coisas que passou na vida para chegar nisso. Lembra das barreiras sociais impostas durante a caminhada. Estou feliz com o reconhecimento, no entanto, sei que meu ofício é a escrita e preciso continuar produzindo.

Falando ainda sobre reconhecimento, O Avesso da Pele soma-se a outros exemplos de obras de autores negros que vivem (ou viveram, no caso de Paulo Scott) em Porto Alegre e que abordam experiências da população negra na cidade. Marrom e Amarelo, de Scott, segue sendo muito elogiado e comentado. Para citar outro exemplo, recentemente foi anunciado o lançamento de Os Suprimidos, de José Falero, pela Todavia. Como você vê o interesse despertado por essas narrativas?

Marrom e Amarelo traz questões muito interessantes sobre a complexidade diante da hierarquização cromática no Brasil. É um livro com muitas camadas e revela uma Porto Alegre crua e violenta. O José Falero é um dos grandes nomes da literatura nacional contemporânea, seu livro de estreia, Vila Sapo é uma obra muito bem construída, principalmente no que se refere à reinvenção linguística.

Creio que há vários fatores aí envolvidos. O primeiro deles é a preocupação estética desses escritores, que é anterior à discussão política. Depois acredito que há um esgotamento de um determinado tipo de literatura produzida nos grandes centros. Há uma demanda por literaturas que nos apresentem uma visão mais ampla de representações. Nesse sentido, acho que cada vez mais o mercado editorial deve se abrir para autores oriundos de outras experiências. Pelo menos eu torço para que isso aconteça.

Por fim, você pode antecipar alguma coisa do que você está escrevendo atualmente? Em que medida o distanciamento social – e os debates recentes em torno do racismo – têm feito parte das suas reflexões?

Acho que, como a maioria, fiquei paralisado nas primeiras semanas de confinamento. Passei um mês sem produzir nada. Não havia condições para isso. Depois, aos poucos, os debates políticos e raciais se tornam tão importante quanto a pandemia. Do ponto de vista da criação, creio que pouca coisa tenha se alterado devido ao distanciamento. Sempre fui de ficar mais em casa e tenho poucos amigos. As reflexões sobre os efeitos do racismo sempre fizeram parte da minha trajetória, pois com ou sem pandemia, o racismo não dá trégua. Nas últimas semanas tenho me ocupado com a tese de doutorado. Tenho um livro de poemas em andamento, que tem como título provisório A Diluição do Mar. Depois, pretendo retomar um romance iniciado há alguns anos.  

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