Crônica | Parêntese

José Falero: De volta ao campus

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José Falero: De volta ao campus Existiu um período da minha vida em que o campus Vale da UFRGS foi familiar para mim. Durante alguns meses, o matagal ao redor dos prédios ouviu com paciência todas as queixas que desde aquele tempo já iam no meu coração. Durante alguns meses, eu subi aquela triste lomba do campus, e em cada passo eu botava o dobro da força necessária. Porque era com a mais profunda sensação de rancor que eu subia aquela lomba. Durante alguns meses, eu e o Altair fomos para o campus todo santo dia, bem cedo, quando a cidade estava recém acordando. Descíamos do ônibus lotado na Parada 1 da Lomba do Pinheiro, e fazíamos o restante do caminho a pé. Quinze minutos a gente perdia só na Bento, caminhando desde a entrada do Pinheiro até a entrada do campus: esses quinze minutos eram o tempo exato de fumar um cigarro. Depois, mais um cigarro, enquanto subíamos a lomba do campus, sempre tomando o maior cuidado para que o T8 não passasse por cima da gente. Não íamos até o topo: no meio do caminho, saíamos da avenida principal e enveredávamos por uma ruazinha estreita. Essa ruazinha nos levava mato adentro e terminava em seguida. Não me pergunte a que se destinava o núcleo que existia ali. Para mim, parecia algum tipo de laboratório, embora eu não compreendesse o sentido de um laboratório escondido no meio do mato. Aluno nenhum botava os pés ali. Apenas homens de jaleco branco apareciam, às vezes. Havia tambores enormes de algum produto inflamável: lembro muito bem disso, porque não podíamos fumar depois de chegar ali. Depois de chegar ali, só o que podíamos fazer era trabalhar. O Altair era o pedreiro; eu, o ajudante. A gente construiu uma espécie de galpão. Conforme sabemos, uma das funções do ajudante de pedreiro é ir comprar o refrigerante do meio-dia. O pedreiro paga, e o ajudante vai comprar: desde que o samba é samba é assim. Então, toda manhã, por volta das 11h30, eu abandonava a pá e a betoneira e ia comprar uma Coca. E eu ia comprar lá em cima, no topo da lomba do campus. Era lá em cima que eu tinha que ir: lá onde ficavam os prédios, lá onde havia manadas de alunos. Era lá que eu tinha que ir comprar o refrigerante: no meio dos universitários. Durante alguns meses, eu fui o guri todo sujo de argamassa usando um Havaianas remendado com prego que aparecia caminhando no meio dos alunos, indo comprar refrigerante. Durante alguns meses, eu fui o intruso que andava encolhido, com vergonha, por entre os prédios da UFRGS. Durante alguns meses, eu fui o pobre-diabo que passava por ali, e que imaginava, com razão ou não, ser o alvo de toda e qualquer gargalhada que soasse à sua passagem. Durante alguns meses. Toda manhã. Perto do meio-dia. Quando o galpão finalmente ficou pronto, eu dei graças a Deus. Creia-me, leitor: não existe ambiente mais hostil para um pé-rapado do que um ambiente […]

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Existiu um período da minha vida em que o campus Vale da UFRGS foi familiar para mim. Durante alguns meses, o matagal ao redor dos prédios ouviu com paciência todas as queixas que desde aquele tempo já iam no meu coração. Durante alguns meses, eu subi aquela triste lomba do campus, e em cada passo eu botava o dobro da força necessária. Porque era com a mais profunda sensação de rancor que eu subia aquela lomba. Durante alguns meses, eu e o Altair fomos para o campus todo santo dia, bem cedo, quando a cidade estava recém acordando. Descíamos do ônibus lotado na Parada 1 da Lomba do Pinheiro, e fazíamos o restante do caminho a pé. Quinze minutos a gente perdia só na Bento, caminhando desde a entrada do Pinheiro até a entrada do campus: esses quinze minutos eram o tempo exato de fumar um cigarro. Depois, mais um cigarro, enquanto subíamos a lomba do campus, sempre tomando o maior cuidado para que o T8 não passasse por cima da gente. Não íamos até o topo: no meio do caminho, saíamos da avenida principal e enveredávamos por uma ruazinha estreita. Essa ruazinha nos levava mato adentro e terminava em seguida. Não me pergunte a que se destinava o núcleo que existia ali. Para mim, parecia algum tipo de laboratório, embora eu não compreendesse o sentido de um laboratório escondido no meio do mato. Aluno nenhum botava os pés ali. Apenas homens de jaleco branco apareciam, às vezes. Havia tambores enormes de algum produto inflamável: lembro muito bem disso, porque não podíamos fumar depois de chegar ali. Depois de chegar ali, só o que podíamos fazer era trabalhar. O Altair era o pedreiro; eu, o ajudante. A gente construiu uma espécie de galpão. Conforme sabemos, uma das funções do ajudante de pedreiro é ir comprar o refrigerante do meio-dia. O pedreiro paga, e o ajudante vai comprar: desde que o samba é samba é assim. Então, toda manhã, por volta das 11h30, eu abandonava a pá e a betoneira e ia comprar uma Coca. E eu ia comprar lá em cima, no topo da lomba do campus. Era lá em cima que eu tinha que ir: lá onde ficavam os prédios, lá onde havia manadas de alunos. Era lá que eu tinha que ir comprar o refrigerante: no meio dos universitários. Durante alguns meses, eu fui o guri todo sujo de argamassa usando um Havaianas remendado com prego que aparecia caminhando no meio dos alunos, indo comprar refrigerante. Durante alguns meses, eu fui o intruso que andava encolhido, com vergonha, por entre os prédios da UFRGS. Durante alguns meses, eu fui o pobre-diabo que passava por ali, e que imaginava, com razão ou não, ser o alvo de toda e qualquer gargalhada que soasse à sua passagem. Durante alguns meses. Toda manhã. Perto do meio-dia. Quando o galpão finalmente ficou pronto, eu dei graças a Deus. Creia-me, leitor: não existe ambiente mais hostil para um pé-rapado do que um ambiente […]

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