Sevilhizando o mundo
Para celebrar o centenário de João Cabral de Melo Neto (1920 – 1999), nascido em um distante 9 de janeiro, a atuadora Ana Campo e o violonista Marcel Estivalet conceberam o recital João Cabral Sevilhizador: 100 Anos em 10 Poesias. O título remete à frase “Há que sevilhizar o mundo”, em que o pernambucano manifesta o encanto que a capital andaluza lhe despertou entre os anos 1940 e 1960, em diferentes períodos nos quais atuou como diplomata na Espanha. O espetáculo – que teve pré-estreia no final do ano passado e será apresentado ao longo de 2020 – reúne poemas do livro Sevilha Andando (1989), como Juan Belmonte e Sevilha e a Espanha.
Assista ao vídeo de Juan Belmonte:
“A gente conhece o nome, mas dificilmente para e lê João Cabral. Infelizmente, fica restrito ao meio acadêmico. Nossa ideia é que, através de estímulos estéticos, as pessoas assimilem sua obra”, explica Ana. O recital nasce de leituras dos poemas e remete à origem espanhola da atuadora. “Nasci no Uruguai, e meu sobrenome Campo vem das Astúrias. O flamenco é latente, chegou na minha vida de uma forma muito natural”, conta.
O projeto começou a ganhar contornos em conversas com o violonista Giovani Capeletti, referência da guitarra flamenca em Porto Alegre, que atualmente vive na Espanha. Antes de se mudar, Capeletti indicou Marcel para dar continuidade à parceria com Ana. Das trocas entre os três, surgiu a sonoridade que define o repertório. “Não precisava ser só flamenco, Cabral não era um poeta gitano andaluz. Era um brasileiro, nordestino, falando de sua paixão por Sevilha”, afirma Marcel.
A partir desse entendimento, o músico mesclou diferentes linguagens estéticas: além do flamenco, temas espanhóis, catalães e brasileiros, somados a interpretações autorais. “Buscando a liberdade da expressão da Ana, incluí um pouco de composição e improvisação a partir da fala”, explica Marcel.
Desobediências criativas
Duas “desobediências” criativas a João Cabral marcam o projeto sevilhizador de Ana e Marcel. A primeira delas, quanto à falta de gosto pela música manifestada pelo poeta. Para Ana, no entanto, longe de ser antimusical, João Cabral nos brinda com “outra musicalidade” – corroborando as leituras que apontam o elemento rítmico como um dos principais em seus versos.
A segunda desobediência veio à tona durante a pesquisa para o projeto. Ana encontrou um relato da poeta Marly de Oliveira, segunda esposa de João Cabral, em que ela menciona a aversão do escritor à leitura em voz alta de sua poesia – à exceção de Morte e Vida Severina (1956) e da edição lançada em 1984 que traz no título o adendo E Outros Poemas em Voz Alta. Na visão de Ana, essa resistência está relacionada à busca por uma linguagem afastada de sentimentalismos, característica marcante na produção do pernambucano.
Para atenuar a desobediência ao escritor, Ana recorre a estratégias narrativas do poeta e dramaturgo Bertolt Brecht, que defendia o efeito de distanciamento nas criações cênicas: “Tento usar meu conhecimento de teatro dialético, mostrar algo em vez de encarnar”. Bem-humorada, ela imagina qual seria a reação de João Cabral diante do espetáculo: “Acredito que se ele visse o recital, se sentiria bem homenageado”.
Assista ao vídeo de Sevilha e a Espanha: