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O tempo está do lado de Dom La Nena

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O tempo está do lado de Dom La Nena Foto: Rob Jacobs, Six Degrees/Divulgação

Nascida em Porto Alegre e radicada em Paris, com longas estadias em cidades como Buenos Aires e Lisboa, Dom La Nena acaba de lançar seu terceiro disco solo. No ótimo Tempo, a cantora, violoncelista e compositora que já colaborou com artistas como Jane Birkin, Jeanne Moreau e Marcelo Camelo reúne canções que misturam pop, world music e música de câmara, com letras influenciadas por sua recente maternidade.

“A composição, para mim, não é algo realmente controlado. É muito inconsciente, muito intuitivo. Tudo o que vivo no cotidiano é inspiração e está presente na minha música. Faz pouco tempo que me tornei mãe e isso gerou em mim muitas reflexões sobre a vida, sobre o valor do nosso tempo e, como consequência, são temas que estão muito presentes no disco: o nascimento, a vida, o envelhecimento e, por fim, a morte”, explica Dom a respeito do álbum sucessor de depois de Ela (2013) e Soyo (2015), ambos aclamados por importantes veículos internacionais como The New Yorker, NPR e The New York Times – que comparou a brasileira com artistas como Juana Molina, Lhasa e Hope Sandoval.  

Em Tempo, Dom é responsável por todos os instrumentos, usando voz, violoncelo e algumas partes de piano. Até mesmo os sons de percussão foram criados no cello. “Minha intenção nesse álbum foi explorar novas formas de usar meu instrumento. Minha ideia era levá-lo por caminhos novos, explorando sonoridades do violoncelo que se distanciam das que habitualmente conhecemos”, justifica. A única participação especial é da estrela Julieta Venegas, cantora e compositora mexicana radicada em Buenos Aires, que divide os vocais na faixa Quién Podrá Saberlo.

Foto: Rob Jacobs, Six Degrees/Divulgação

No disco, a intérprete canta em português, espanhol e francês. “A música demanda coerência entre os sons, as palavras e os ritmos específicos de cada linguagem.” A experiência de ser mãe ecoa na conjunção da instrumentação de Esperando Alma e Teu Coração, músicas em que se escuta os batimentos cardíacos de sua filha, gravados quando Dom ainda estava grávida de Alma, hoje com três anos.

Produzido por Dom e gravado em Lisboa, Tempo testemunha a artista a maturidade criativa da artista de 32 anos. O disco chega acompanhado de três excelentes clipes (confira abaixo), criados para as músicas Oiseau Sauvage, Todo Tiene Su Fin e Quién Podrá Saberlo – que conta com a participação de Julieta Venegas. Os vídeos foram dirigidos pelo francês Jeremiah, marido de Dom e pai de Alma, que já realizou produções audiovisuais para grandes nomes da música pop internacional com a banda norte-americana R.E.M.

Em entrevista exclusiva, Dom La Nena fala sobre Tempo, a relação passional com o violoncelo, as influências musicais, o cosmopolitismo e o cancelamento das apresentações ao vivo por causa da pandemia: “Obviamente que sinto falta, e é muito frustrante: já tive mais de 60 shows cancelados ou adiados durante este ano, e a lista aumenta semana após semana… Não vejo meus pais há quase um ano e meio! É muito triste”.

Foto: Rob Jacobs, Six Degrees/Divulgação

Você toca todos os instrumentos e faz todas as vozes em Tempo. Como foi o processo de produção e gravação desse autêntico tour de force?

Provavelmente, por eu ser originalmente instrumentista (violoncelista), tenho um real prazer em tocar ao máximo os instrumentos eu mesma. Prefiro, em geral, ter um violão ou uma guitarra mal tocada, mas tocada por mim, do que chamar um guitarrista profissional… Me parece que na maioria dos casos soa mais parecido comigo quando é feito por mim, dá mais autenticidade a minha música. No caso do Tempo, os únicos instrumentos presentes são o violoncelo e o piano. Diria que 95% do que se escuta foi feito com o violoncelo… Às vezes podem parecer sintetizadores, percussões ou teclados… Mas são todos sons que vêm do violoncelo e que eu trabalhei ou na hora de gravar (“preparando” o instrumento como se prepara às vezes o piano), bem como na pós-produção, na mixagem. Era uma vontade minha com esse disco de explorar mais ainda o meu instrumento e levar ele a caminhos que não tínhamos experimentado juntos até então… Toco violoncelo há mais de 20 anos, e talvez sentisse uma certa necessidade de renovarmos um pouco a nossa relação! Portanto, foi bastante natural produzir o disco sozinha, uma vez que eram somente minha voz e meu violoncelo… Comecei a gravar as canções sem saber exatamente onde estávamos indo: sabia que queria fazer o disco com o violoncelo, mas com uma sonoridade pop. A partir daí fui explorando aos poucos, foi como um laboratório sonoro, descobrindo pedais, efeitos, amplificadores… Tive a sorte de trabalhar na gravação com um técnico que entendia bem o que eu queria, então bem rapidamente consegui instalar um método, um ritmo de trabalho, a estética geral do disco, e tudo foi bastante fluido.

De que maneira a gravidez e o nascimento de sua filha influenciaram a concepção do disco e das músicas?

Com certeza a gravidez e o nascimento da minha filha influenciaram bastante a concepção do disco, mas foi de uma maneira bem inconsciente. Quando vi as músicas traziam questionamentos completamente novos na minha música: a morte, a vida, o passar do tempo… Certamente, são questões que vieram com a maternidade.

Como o próprio título sugere, Tempo é uma meditação sobre passagens, ciclos, crescimento, envelhecimento, finitude. Não por acaso, o álbum também soa como seu trabalho mais maduro até agora. Comente um pouco a respeito do atual momento de sua vida e carreira, por favor.

A composição do disco veio em várias fases de pausas de turnê. Na época eu passava bastante tempo em Lisboa e compus grande parte do disco – gravei o disco inteiramente lá. Estando lá, eu consegui um certo distanciamento com relação à rotina e aos shows, o que me auxiliou bastante no processo criativo.

Por falar em vivências, sua trajetória é excepcionalmente rica em experiências para alguém tão jovem. Como esse cosmopolitismo e essa itinerância pelo mundo influenciam seu trabalho?

Com certeza, todas as colaborações que tive e que continuo tendo são extremamente inspiradoras. Não só tive a sorte de começar a trabalhar muito jovem, mais a sorte ainda maior de começar como violoncelista da Jane Birkin durante mais de dois anos… Depois acompanhei artistas como a Jeanne Moreau e artistas menos conhecidos no Brasil como o Etienne Daho, ou Piers Faccini. Sempre foi em contextos de uma banda acompanhante bem reduzida, formatos de três ou quatro músicos no máximo – portanto, eram experiências bem intensas, nas quais aprendi muito. A produção do meu disco com o Marcelo Camelo, a minha colaboração com o grupo português Danças Ocultas, minha parceria com a Rosemary Standley de quase 10 anos (no projeto Birds on a Wire, reinterpretam um repertório que vai de Henry Purcell a Leonard Cohen, passando por Gilberto Gil, Violeta Parra e cantos tradicionais catalães)… É claro que aprendo muito com todas essas experiências. Diria que meu processo criativo é muito solitário, mas que se alimenta de colaborações variadas. Por outro lado, está a minha história de vida que é um pouco particular: nasci no Brasil, cresci na Argentina e na França – onde voltei a morar e na qual vivo há 15 anos. Estudei durante muitos anos música clássica, mas sempre escutei música de todo tipo e das mais variadas… Todos esses são fatores que também enriqueceram muito meu processo criativo.

A instrumental Valsa remete ao universo sonoro de Leonard Cohen, artista que você já interpretou no projeto Birds on a Wire, enquanto Teu Coração ecoa o clássico Carinhoso, de Pixinguinha e Braguinha. Quais foram as suas referências musicais em Tempo?

Diria que não tenho uma referência especifica para este disco. O ponto de partida foi bastante experimental, de redescoberta do meu instrumento, um processo muito íntimo. Claro que tenho inúmeras referencias musicais: começando pela música clássica, toda a música brasileira que vai de Villa-Lobos a Los Hermanos ou Metá Metá, passando por Tom, Dorival, Caetano, Gil, Jorge Ben, João Gilberto, Elis, Dona Ivone Lara… A lista seria extensa demais. Muito Leonard Cohen, cancioneiros da América do Sul como Silvio Rodríguez, Violeta Parra, Chavela Vargas, Lhasa de Sela, Barbara, Jacques Brel, Cat Stevens, Devendra Banhart, Strokes, músicas tradicionais que sejam da Bulgária, do Mali ou da Catalunha… É difícil dizer qual seria a maior influência musical. No meu caso, eu não tento imitar nenhuma delas, só as deixo presentes no meu inconsciente e, às vezes, há quem reconheça uma ou outra… É verdade que no caso de Teu Coração existe claramente uma pequena homenagem ao Carinhoso que também é de maneira pessoal uma referência a minha vó.

Como surgiu a parceria com Julieta Venegas na faixa Quién Podrá Saberlo?

Foi uma alegria enorme. Eu conheci a música da Julieta durante minha adolescência na Argentina, e sempre fui muito fã do trabalho dela. A mistura da cultura mexicana com uma estética mais rock ou pop e a sua voz que é única. Suas canções sempre me emocionaram muito. Há alguns anos ela me escreveu pelo Twitter e conversamos um pouco… Logo depois eu tinha um show em Buenos Aires ao qual ela foi assistir de surpresa. Ficamos em contato e pouco tempo depois ela me convidou para participar de uma turnê dela pela Espanha… Foi muito legal, ficamos amigas, e nesse momento surgiu a ideia de fazer uma música juntas. Então, quando eu compus Quién Podrá Saberlo, já tinha em mente o nosso encontro musical, a mistura das nossas vozes. Gravamos a música e o clipe em Buenos Aires, em janeiro de 2020… Realmente, é uma colaboração especialmente emocionante para mim.

Foto: Rob Jacobs, Six Degrees/Divulgação

Você costuma compor em português, espanhol, inglês e francês. Como você decide qual idioma em que uma canção será escrita?

Diria que eu não escolho, quem escolhe é a música mesmo. Acho que uso os idiomas de maneira bastante musical, porque cada língua tem sua sonoridade, seu ritmo, sua cadência… Como em geral eu parto da composição, da música, o que acontece é que a melodia vem com alguns sons ou palavras que vêm naturalmente em um idioma ou em outro… É algo que acaba fugindo totalmente do meu controle!

No disco, você explora uma grande variedade de timbres do violoncelo, inclusive percussivos. Comente a respeito de sua relação com o instrumento, por favor.

Minha história com o violoncelo é muito passional. Comecei pequenina em Porto Alegre, com sete anos. Logo depois fomos morar um tempo na França com minha família por conta do doutorado do meu pai. Foi nesse momento que tive como uma revelação, uma evidência, e virou uma obsessão: nada me interessava além de tocar violoncelo. Com o passar do tempo, me dei conta que teve muito a ver com um momento que não foi nada fácil para mim: foi muito difícil sair do Brasil, deixar meus amigos, parte da minha família, minha vida em Porto Alegre… Tudo na França me parecia muito hostil nesse momento e acho que de alguma maneira eu me “agarrei” de alguma maneira ao violoncelo. Acho que o fato de ter um objetivo, uma paixão, me ajudou a sair desse período difícil – e de fato a partir desse momento tudo começou a melhorar! Quando voltamos para Porto Alegre eu tinha 12 anos, e com 13 anos fui morar em Buenos Aires sem meus pais, para continuar estudando violoncelo lá. Fiz escolhas de vida um pouco radicais que sempre estiveram ligadas com minha dedicação ao violoncelo… Acho que talvez por isso minha relação com o instrumento é tão intensa.

Tempo reúne sonoridades brasileiras em Samba para Você, andinas em Oiseau Sauvage e platinas no caso de Milonga, entre outras. Você identifica alguma influência da música gaúcha no seu trabalho?

Da música gaúcha propriamente não sei, mas provavelmente algo deve ter! Em todo caso, acho que, de uma maneira geral, há muitos elementos da música latino-americana, além da brasileira – é claro.

Você sempre esteve em trânsito, constantemente viajando para diversos países. Como você tem enfrentado estes tempos pandêmicos, que têm nos obrigado a manter o distanciamento social e cancelado shows presenciais e turnês por toda parte?

Obviamente que sinto falta, e é muito frustrante: já tive mais de 60 shows cancelados ou adiados durante este ano, e a lista aumenta semana após semana… Não vejo meus pais há quase um ano e meio! É muito triste. A falta dos shows me parece secundário, comparado com o caos geral que se instalou mundialmente – a nível de saúde e de política, é claro. Aqui na Europa a questão tem sido menos dramática que no Brasil. Conseguimos retomar um pouco os shows entre junho e outubro, mas, desde então, a situação piorou e os teatros voltaram a fechar por tempo indefinido. Tenho tentado me concentrar na divulgação do Tempo, gravar músicas novas, estudar violoncelo e esperar que a situação melhore o mais rápido possível.

Capa do disco. Foto: Six Degrees/Divulgação

Assista ao clipe de Oiseau Sauvage:

Assista ao clipe de Todo Tiene Su Fin:

Assista ao clipe de Quién Podrá Saberlo (com Julieta Venegas):

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