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Richard Serraria na batida plurilíngue do sopapo

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Richard Serraria na batida plurilíngue do sopapo Richard Serraria. Foto: Alass Derivas

Ao longo do mês de setembro, o músico, escritor e pesquisador Richard Serraria dedica-se à primeira fase do projeto Sopaporiki, com o lançamento do audiolivro da iniciativa – que em outubro será publicada em livro impresso e eletrônico (pela editora Escola de Poesia) e ganhará os palcos em 2021. Em 12 textos poéticos, o instrumentista e integrante do grupo Bataclã FC apresenta a cosmogonia do sopapo, instrumento intimamente ligado à história da população negra do Rio Grande do Sul.

O título do projeto aglutina as palavras sopapo e oriki, nome de uma poética do universo iorubá. “Trata-se de uma forma oral de verbalizar poesia e que tem um modo próprio de equilibrar imagem, som e sentido através das palavras”, explica Serraria – leia a entrevista a seguir.

Com apoio do FAC Digital RS e direção musical de Ângelo Primon, a versão sonora do livro reúne as vozes de Eliana Mara Chiossi (RJ), Auristela Melo (RS), Mirian Alves (SP), Ana Lira (PE), Ya Sandrali (RS), Viviane Juguero (RS), Ana dos Santos (RS), Vângri Kaingáng (RS), Julie Dorrico (RO), Aline Gonçalves (RS), Andréa Cavalheiro (RS), Cristal Rocha (RS), Ediane Oliveira (RS), Mérida Sekel (Argentina) e Nosta Mandlate (Moçambique).

“Pensamos em valorizar 15 vozes femininas negras e indígenas no audiolivro, já que o sopapo tem uma história majoritariamente masculina. Trazer a reflexão de gênero a essa dimensão, a perspectiva de democratização do acesso ao tambor num estado que, além das marcas fortes do racismo estrutural, também apresenta dimensões fortes do sexismo”, conta Serraria.

No “preáfrico” do livro, a escritora Eliana Mara Chiossi observa que as tramas poéticas de Sopaporiki são “um desafio à leitura pela alta voltagem de transcriação” por conta, entre outros motivos, do acolhimento de “expressões e matéria de linguagens quase extintas”.

“Nações livres que foram exterminadas, nações livres que foram silenciadas, corpos que tiveram a língua cortada. A língua de cada nação violentada, volta aos poucos, murmúrios, humores, falando baixinho, sem maiúscula, sem submissão ao imperialismo de uma língua oficial, que soterrou histórias e sujeitos”, descreve a escritora.

Confira a entrevista com Richard Serraria sobre a história do sopapo e o projeto Sopaporiki.

Richard, para começar, nos conta um pouco sobre a história do sopapo.

A trajetória do sopapo, tambor negro gaúcho ligado à história das charqueadas em Pelotas, tem três fases marcantes: o sopapo ritualístico (usado no início da matança de gado, no sítio charqueador, com registros de viajantes europeus atestando isso); o sopapo profano (em blocos burlescos, no final do século 19, e no Carnaval competitivo, a partir das décadas de 1930 e 1940, em Pelotas, e final dos anos 1950, em Porto Alegre); e o sopapo na música popular gaúcha (Giba Giba com outros pelotenses introduz o sopapo no carnaval porto-alegrense através da Praiana e depois leva o sopapo para a Música Popular Gaúcha).

O que são os orikis (e neo-orikis), componentes basilares do projeto?

Oriki é uma poética do mundo iorubá, parte da África subsaariana: Nigéria, Benin, Togo e Serra Leoa. Trata-se de uma forma oral de verbalizar poesia e que tem um modo próprio de equilibrar imagem, som e sentido através das palavras. São imagens grandiloquentes com pouco uso do recurso da rima, sintaxe evitando conjunções e valorização das aliterações, dentre outros aspectos.

Me interessa, nesse sentido, além de a estética ir na direção ética, enxergar certa memória negra conservada pela tamboralitura, o tambor e seu entorno como lugar de permanência de um modo de expressão amefricano. Avançar para além do reducionismo de relegar ao negro, como aparece na maior parte da historiografia cultural do Brasil, o lugar do corpo – o negro hábil na dança, no ritmo, no esporte. Procurar enraizamentos de modos negros de pensar vigentes ainda hoje no Brasil do século 21. Desse modo, pensar também na necessidade da urgente incorporação dos saberes negros e indígenas ao corpus da literatura brasileira, bem como nos estudos que se debruçam sobre as origens da canção brasileira. Neo-oriki portanto é uma recriação crioula, partindo de uma tradição poética africana, manejada por um pardo morador da zona sul de Porto Alegre.

Como foi feita a seleção das vozes que integram o audiolivro? E por que a escolha desse formato?

A seleção de vozes se deu ao lado de Eliane Marques, curadora do livro, com quem tive uma troca intensa e decisiva para a concepção editorial. Pensamos em valorizar 15 vozes femininas negras e indígenas no audiolivro, já que o sopapo tem uma história majoritariamente masculina. Trazer a reflexão de gênero a essa dimensão, a perspectiva de democratização do acesso ao tambor num estado que, além das marcas fortes do racismo estrutural, também apresenta dimensões fortes do sexismo.

A escolha do formato audiolivro diz respeito à natureza da tamboralitura, transmissão poética que se dá no boca à orelha junto à mão no couro do sopapo. Nisso pensamos em diferentes ocupações profissionais dessas vozes negras: cantora, escritoras, podcaster, rapper/slammer, designer gráfica, cuidadora de idosos, professora, jornalista, estudante de História, dramaturga e pesquisadora de literatura indígena.

Nos conta mais sobre a relação do sopapo com os orixás do Batuque de Nação Oyó Idjexá e sobre os instrumentos que integram a versão sonora do projeto.

O sopapo esteve na charqueada. Lá ele tinha a função de abrir os trabalhos da matança de gado, sendo tocado na hora grande, consagrada ao Bará, primeiro orixá no panteão clássico do Batuque de Nação Oyó Idjexá. Nos áudios tem tambor ilú, agê e inhã, e de forma respeitosa inserimos esteticamente a presença do tambor sopapo em busca da recriação dessa sonoridade histórica e charqueadora. Ainda colocamos tambores de candombe, entendendo tal manifestação como um fenômeno cultural do escravismo na Bacia do Prata, inserindo o Rio Grande do Sul nesse contexto histórico e cultural (o material está disponível aqui).

A recriação estética dessa sonoridade histórica não se constitui absolutamente em nenhum momento enquanto função normativa, querendo atestar a forma ancestral como se realizava o ritual. Apenas colocando o sopapo e os tambores de candombe em diálogo com a instrumentação do Batuque de Nação que atravessou o século 20. Os tambores usados no projeto Sopaporiki na versão audiolivro foram gentilmente cedidos pelo Alabê Ôni, detentor dos direitos fonográficos (áudio disponível aqui).

De que forma o plurilinguismo ganha forma no projeto?

O plurilinguismo ganha forma como instância capaz de combater o colonialismo epistemológico. O cerne da linguagem e o modo como as ciências ocidentais se constroem são formas que buscam instaurar a subordinação do pensamento negro e indígena, por exemplo. Frantz Fanon, pensador martinicano, dizia que todo povo colonizado toma posição diante da linguagem da nação civilizadora.

De forma análoga, no Brasil, Lélia Gonzalez levanta as formações do inconsciente brasileiro que são europeias e brancas. Nisso ela expõe a categoria político-cultural de amefricanidade, trazendo a importância do pensamento negro e dos povos originários para a conformação da América. Quando ela foca nos falares da América, se depara com modificações operadas junto às línguas oficiais: espanhol, inglês, francês e português. Assim o pretoguês nada mais é do que a marca de africanização e indigenização do português falado no Brasil. Desse modo, andaríamos na direção de entender certo aspecto pouco explorado da influência negra e indígena na formação histórico cultural da América.

Minha escolha então foi partir da língua portuguesa oficial, instaurando fissuras em seu cerne e, ao mesmo tempo, valorizando a etimologia negra e indígena já presentes na linguagem cotidiana do Brasil. Resolvi junto a isso incluir elementos das línguas banto e iorubá (africanas), guarani, kaingáng, charrua e quechua (indígenas do Rio Grande do Sul, do Uruguai e da Argentina), valorizando ainda espanholismos fronteiriços e gírias porto-alegrenses, lunfardo e bozal (variantes linguísticas da Bacia do Prata).

Nos conta mais sobre a parceria com o Alabê Ôni e o projeto TamboralituRaS, previsto para 2021.

O Alabê Ôni, grupo de percussão que faço parte junto com Pingo Borel, Mimmo Ferreira e Tutti Rodrigues, desde 2012 recria esteticamente a condição ritualística do sopapo charqueador. Em 2017 lançamos Berço do Batuque no RS: Mestre Borel, toques e cantos da Nação Oyó Idjexá. Há ali a perspectiva de recuperação do acervo do principal babalorixá do estado, em que há um canal no YouTube com vídeos que tratam da cultura do Batuque e ainda gravações em áudio, cantos e toques ritualísticos. Ali gravamos o Batuque de Nação Oyó Idjexá com ilú, agê e inhã junto com tambor sopapo em busca da recriação de certa evidência histórica. Ainda com tambores de candombe, fenômeno cultural negro da Bacia do Prata, em que o RS se insere (material disponível aqui). A ideia das TamboralituRaS consiste em levar isso ao palco, na terceira fase do projeto Sopaporiki.

Por fim, o 20 de Setembro de 2020 foi marcado por um protesto criativo em monumentos e nomes de rua, lançando outros olhares para as trajetórias de figuras cultuadas por quem celebra a Revolução Farroupilha. De que forma você acredita que o projeto Sopaporiki contribui para as discussões sobre a presença e representatividade da cultura negra no estado?

Afirmo a maturidade da expressão negra no Rio Grande do Sul no século 20 através da nomeação de algumas figuras icônicas. Giba Giba como expressão madura da dimensão cancional negro gaúcha onde se pode inserir ainda Zilah Machado, Luís Wagner e Bedeu, dentre outras figuras exponenciais. Na dimensão literária ressalto a figura de Oliveira Silveira e seu percurso etnopolítico e de renovação da linguagem tão bem assinalado por Ronald Augusto no prefácio da Obra Reunida (IEL/2012), ao afirmar que todos nós somos de certo modo ramificações dessa complexa árvore Oliveira.

Insiro ainda nessa dimensão de maturidade da expressão negra no estado a riqueza dos toques e cantos do Batuque de Nação Oyó Idjexá em que a figura de Mestre Borel é elucidativamente representativa de tal dimensão onde se poderia mencionar ainda Mãe Gratulina de Xapanã ou Mãe Ester de Iemanjá dentre muitas outras figuras reconhecidas nesse contexto. Com máximo respeito a esses e essas griôs, penso que o projeto se alinha enquanto perspectiva de sedimentação de imaginário negro no Rio Grande do Sul através da literatura de livro. São falavras de tambor como produção de conhecimento da cultura negra nessa parte da América e também enquanto vigília epistêmica: desenvolver estratégias constantes de contranarrativas. O escamoteamento da presença negra na construção cultural do folclore oficialesco do estado, antes levantado por Mário de Souza Maia, Tau Golin e Mário Maestri, dentre outros pensadores, é um dado vivo em setembro de 2020 a exigir atenção e ação. 

O projetonasceu assim, enquanto pretensão de posse da linguagem carregada de potência. A perspectiva deliberada de criação de imaginário negro num estado que em seu folclore oficialesco se orgulha de ser a Europa do Brasil. Eis em Sopaporikio tambor griô afirmando que o Rio Grande do Sul também é, de certo modo e à sua maneira, a África do Brasil. 

Richard Serraria também compartilhou um relato sobre a história recente do sopapo e do seu envolvimento no resgate do instrumento até a realização do projeto Sopaporiki.

No final do século 20 o sopapo corria risco de extinção. Cria-se então, por ideia de Giba Giba, junto ao governo estadual, na gestão Olívio Dutra, o projeto CABOBU. No ano 2000 ocorreram dois eventos em Pelotas, em janeiro e dezembro do mesmo ano, com a construção de 40 sopapos, que foram doados a músicos, escolas de samba, grupos de dança etc. – uma revitalização do sopapo, uma passagem de bastão, o sopapo chegando ao século 21.

Após isso, o sopapo ganha importância especial no cenário cultural do estado. Em 2007 é criado em Porto Alegre o Ponto de Cultura Quilombo do Sopapo (nome sugerido por um dos integrantes da Bataclã FC, banda que desde 1999 usa sopapo em seu peculiar crossover de música glocal, global mais local). Em 2010 é realizado o documentário O Grande Tambor (IPHAN/Catarse), contando a trajetória negra no estado através da figura de Mestre Baptista, luthier principal junto com sua família do projeto CABOBU.

Em 2012 cria-se o grupo Alabê Ôni, em que o sopapo é o protagonista junto aos tambores irmãos do Cone Sul. O grupo circula por 114 cidades do Brasil em 2013/14 no projeto Sonora Brasil do SESC, dentro da série Tambores e Batuques. Ainda em 2012 tem início o Sopapo Poético, encontro de poesia negra em Porto Alegre.

Em 2017 defendo uma tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS, com um disco-livro chamado Mais Tambor Menos Motor, onde traço uma história social do sopapo, reafirmando também no ambiente acadêmico a importância basilar desse tambor para a cultura negra do estado. Um sopapo griô, contador de histórias, atestando a presença negra na construção econômica do estado através da mão de obra escravizada, força motriz da riqueza gerada nas charqueadas – e ainda a ideia de que o tambor extrapola a dimensão musical constituindo-se portanto num artefato político.

Em 2019 executou-se o Projeto Pedagogia do Sopapo,via FAC RS, com coordenação de produção de Lorena Sanchez e Coordenação Pedagógica de Richard Serrariano Ponto de Cultura Quilombo do Sopapo, consistindo na democratização de acesso do sopapo às novas gerações, no caso crianças e mulheres adentrando nesse território sopapístico, na maior parte das vezes restrito a homens altos e fortes.

Durante a realização desse projeto, me dei conta da confluência de datas: em 2000, projeto CABOBU em Pelotas; no ano de 2010, o documentário O Grande Tambor; em 2020 então pensei que seria importante marcar a presença do sopapo adentrando no universo literário, com a ideia de um griotismo literário através do sopapo – processo de resistência e manutenção da memória coletiva negra no Rio Grande do Sul. 

O projeto de pesquisa para escrita demandou cerca de 18 meses entre leituras de livros de Pierre Verger, Antônio Risério, Oliveira Silveira, Norton Figueiredo Correa, Reginaldo Gil Braga, Mestre Borel, Mário Maestri, Augusto Meyer, Luís Augusto Fischer, Adão Francisco Monquelat, Carl Seidler, Saint-Hilaire, Nei Lopes e o Dicionário Banto do Brasil, dicionários e gramáticas iorubá, dicionários indígenas da América, dicionário de porto-alegrês e ainda pesquisas históricas no Cabildo, em Montevidéu, e na Biblioteca Nacional Argentina, em Buenos Aires. Cheguei à forma final ali por julho de 2020.

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