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Cultura e saúde mental: atividades culturais são a principal fonte de bem-estar dos brasileiros, segundo pesquisa

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Cultura e saúde mental: atividades culturais são a principal fonte de bem-estar dos brasileiros, segundo pesquisa 9º Gera Encontro, do GerAção POA (2022). Foto: Cristine Rochol/PMPA

As atividades culturais têm papel central na percepção de bem-estar dos brasileiros, segundo a quarta edição da pesquisa Hábitos Culturais, realizada pela Fundação Itaú em parceria com o Datafolha.

Ao todo, 54% dos entrevistados afirmam que as atividades culturais melhoram o bem-estar, à frente de atividades de lazer (19%) – como frequentar parques, igrejas, praias ou passear –, físicas (17%) e contatos pessoais (8%), conforme as categorias do levantamento. Foram ouvidas 2.405 pessoas de 16 a 65 anos, em todas as regiões do país, por meio de entrevistas presenciais e telefônicas em setembro de 2023. O estudo – confira a íntegra aqui – informa margem de erro de 2% para mais ou menos, com índice de confiança de 95% e cada ponto percentual representando 1,4 milhão de indivíduos.

Mais de 77% dos respondentes concordam total ou parcialmente com afirmações de que atividades culturais reduzem estresse, ansiedade e sensações de tristeza e solidão, além de melhorarem a qualidade de vida e os relacionamentos em casa e no trabalho.

Na lista de atividades culturais com potencial benefício ao bem-estar, o cinema lidera com 18% das respostas, seguido de assistir shows/festivais de música (15%), teatro (12%), ouvir música (9%), dançar (9%), ir a museus/exposições (4%), atividades culturais genéricas (4%) e ler (3%).

A distância entre os dois extremos da lista – cinema e leitura – encontra paralelo em outros dois levantamentos. Enquanto o público das salas de exibição em 2023 aumentou 18,3% em comparação com 2022, totalizando 113 milhões de pessoas, segundo dados da Agência Nacional do Cinema, a venda de livros não vai bem. Oitenta e quatro por cento dos brasileiros não adquiriram nenhum exemplar em 2023, conforme estudo da Câmara Brasileira do Livro e da Nielsen BookData que também aponta aumento de 7% no preço do livro em 2023 – variação que, pela segunda vez desde o início da série histórica, foi acima da inflação.

Na esteira de outros estudos sobre a saúde mental dos brasileiros no pós-pandemia, a pesquisa Fundação Itaú/Datafolha informa que 42% dos entrevistados tiveram algum problema de saúde mental ou emocional nos 12 meses anteriores, dentre os quais 63% buscaram tratamento. Refletindo um cenário de desigualdades, mulheres, pessoas não brancas, desempregados e indivíduos das classes D e E apresentam as maiores porcentagens entre os respondentes que lidaram com o sofrimento mental.

Olhando para si e o outro

“Quanto mais o sujeito está permeável à arte, seja um livro, um filme ou no teatro de rua, mais ele vai ter uma espécie de identificação com essa produção, com a qual vai poder se pensar. Isso com certeza pode melhorar a relação com outras pessoas e dentro de casa. Como se diz, quando a gente se transforma, o outro também precisa se transformar”, reflete a psicanalista Camila Backes, citando a questão dos relacionamentos abordada pela pesquisa.

Backes observa que as relações entre arte, cultura e saúde mental encontram espaço privilegiado na obra de Sigmund Freud. Atribui-se ao médico austríaco a frase “Aonde quer que eu vá, descubro que um poeta esteve lá antes de mim”, indicando o papel das produções artísticas na compreensão de nós mesmos e dos outros. Além de ampliar recursos simbólicos, muitas atividades culturais também nos fazem lembrar que somos feitos de carne e osso e pertencemos a uma coletividade. 

“Não podemos esquecer que temos um corpo, que está cantando junto a marchinha de carnaval ou curtindo um mesmo interesse musical. Somos gregários. Não tem como ter saúde mental sem pensarmos na pergunta que Roland Barthes nos traz: ‘Como viver junto’”, afirma Backes, doutora em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS.

Outro aspecto relevante do contato com a arte, segundo a psicanalista, é a possibilidade de experimentarmos outros tempos, deixando um pouco de lado o fluxo de imagens das redes sociais. “A arte em suas diversas formas instiga o demorar-se na palavra – e cada um pode interpretar isso de um jeito – para capturar o sentido que ela nos traz.”

Em tempos de inteligência artificial criando “mulheres perfeitas”, Backes ressalta a importância de lidarmos com nossas fragilidades por meio da arte, como ensina a palhaçaria: “O palhaço é aquele que erra e sabe fracassar. Mostra que somos humanos e, por isso, vulneráveis. Através do riso, possibilita um encontro com o outro que está assistindo e pensa: ‘eu também posso fracassar’”.

O psicólogo Leonardo Garavelo, que ao longo de sete anos desenvolveu uma pesquisa no Ateliê de Escrita da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro, é enfático: “Não tenho dúvida alguma de que a cultura amplia nossa cosmovisão e capacidade de olharmos para nós mesmos e o outro, com isso, melhorando expressivamente nossa saúde mental”.

“Várias pessoas tidas como loucas, esquizofrênicas, doentes, ‘anormais’ – como diz Michel Foucault –, carregam a lógica discursiva do incapaz, disfuncional. Através da arte e da cultura em suas mais diversas formas, essas ordens discursivas mudam. Deixo de me ver de modo padronizado, limitador, e assumo uma dimensão múltipla, criativa, viva, que traz bem-estar”, completa Garavelo, doutor em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS.

Ele aponta três dimensões dos benefícios da arte e da cultura para a saúde integral: ética, no modo como o sujeito se relaciona com o mundo; estética, permitindo expressar o que se vê, pensa e sente; e política, à medida que envolve relações com outras pessoas nas atividades culturais e o contato com outras narrativas e sensibilidades presentes nas manifestações artísticas.

“Espaços de trabalho, arte e expressão são potência de saúde”

Atividade do Cais Mental (CAPS II), realizada em dezembro de 2022. Foto: Cristine Rochol/PMPA

O Centro de Atenção Psicossocial Cais Mental (CAPS 2) integra a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) – conjunto de serviços de atenção à saúde, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), instituído para promover o cuidado de pessoas com sofrimento mental e necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas. 

Servidor municipal do Cais Mental, o psicólogo Robson Gonçalves ressalta a contribuição das atividades culturais para a ressignificação de experiências e marcadores sociais: “A cultura viabiliza que a gente possa olhar para o transtorno mental e a loucura desde um lugar de potência, que inspira possibilidades e amplia perspectivas”.

Localizado na avenida José Bonifácio, no bairro Farroupilha, o Cais Mental promove práticas de expressão em dança, teatro, escrita e música. “Os usuários escolhem músicas que desejam escutar e, a partir daí, podem se expressar dançando, com um instrumento musical ou conversando sobre a canção escolhida. Os exercícios de aquecimento vocal e respiração ajudam as pessoas com ansiedade”, conta Gonçalves, citando como exemplo uma das atividades promovidas pelo centro de atenção.

Os usuários do Cais Mental também participam de atividades externas, como visitas a museus e sessões de cinema na Cinemateca Capitólio. “Pode parecer simples para quem tem acesso, mas muitos usuários nunca tiveram a possibilidade de visitar equipamentos culturais. Alguns se emocionam e dizem ‘nunca pensei que pudesse entrar aqui’”.

Café Mentaleiro, junto à loja e à sede do GerAção POA. Foto: Cristine Rochol/PMPA
Café Mentaleiro, junto à loja e à sede do GerAção POA. Foto: Cristine Rochol/PMPA

Já no GerAção POA, única oficina de geração de trabalho e renda em Porto Alegre da RAPS, o trabalho se soma à cultura na recuperação dos usuários. Ao todo, 120 pessoas com sofrimento psíquico participam das oficinas, desenvolvendo trabalhos criativos em serigrafia, encadernação, papel artesanal, costura, bordado e velas, os quais são vendidos em espaços como a Cinemateca Capitólio e na sede do GerAção POA – na rua Mariante, no bairro Rio Branco –, com a renda das vendas revertida para os oficineiros, como são chamados os usuários do espaço.

Loja do GerAção na Cinemacoteca Capitólio. Foto: Cristine Rochol/PMPA

Conselheiro distrital e municipal de saúde, Dirceu Luiz Rohr Júnior conta que ingressou no GerAção POA em 2015, após acolhimento no Centro de Saúde Modelo, sua unidade de saúde de referência. Vivia um momento de dificuldades nos relacionamentos familiares e necessitava de uma fonte de renda. “Nesses oito anos e quatro meses que estou lá, aprendi muito sobre economia solidária e participação no controle social dos conselhos de saúde, exercendo minha cidadania”, conta o técnico em serigrafia.

“As pessoas que têm sofrimento mental são plenamente capazes de produzir no trabalho, cada uma a seu tempo, desde que tenham acesso a processos, ferramentas e projetos que permitam elas se desenvolverem com protagonismo e autonomia. Arte, cultura e saúde mental se complementam”, afirma Rohr, citando frases como “Por uma sociedade sem manicômio” e “De perto ninguém é normal”, que estampam alguns dos produtos do GerAção POA.

Oficina do GerAção POA. Foto: GerAção POA/ Divulgação

A psicóloga Adriane da Silva, servidora municipal que atua no GerAção POA, destaca a importância do trabalho pela via da economia solidária, com respeito ao ritmo das pessoas, para a saúde mental: “Espaços de trabalho, arte e expressão são potência de saúde. Tiram o foco da doença, do diagnóstico, da patologia e o colocam na produção criativa e promoção da saúde”. 

“As pessoas que frequentam o GerAção POA passam a ter outro lugar social. Começam a se reconhecer dentro da sua potência e de suas habilidades, se sentem com mais condições de circular pela cidade – ir ao cinema, ao teatro – e estabelecer relações de amizade e vínculos sociais. O ganho financeiro é importante e o subjetivo é imenso a partir dessas atividades”, afirma a psicóloga, explicando que os estigmas relacionados à saúde mental muitas vezes restringem a circulação de pessoas com sofrimento psíquico aos ambientes domésticos e às rotinas de seus tratamentos.

Ausência de políticas públicas

Gonçalves critica a falta de políticas públicas que promovam a articulação entre cultura e saúde mental. “Se existisse de fato alguma política pública ou normativa para fomentar isso de outra forma, o trabalho que já é feito poderia ser potencializado, inclusive prevenindo o adoecimento psíquico”, observa o psicólogo, destacando ainda a falta de centros culturais que acolham, com mais recursos, atividades hoje realizadas nos espaços da Rede de Atenção Psicossocial.

Leia também: Melo deve aplicar no SUS metade do proposto pela Secretaria Municipal da Saúde

Adriane da Silva define a atuação dos profissionais da rede como uma luta constante para consolidar serviços e conquistas relacionados à reforma psiquiátrica – sancionada em lei federal de 2001, levando ao encerramento gradual das atividades de manicômios e hospitais psiquiátricos: “A rede vem se fortalecendo, muito pela força dos trabalhadores, dos usuários e dos serviços, mas ainda precisamos de uma política pública que dê conta. Precisamos estar sempre nessa luta, porque a força contrária – para que voltem os modelos antigos de atendimento – está sempre no cenário. Em vários momentos, a questão dos manicômios e internações retorna em novas modelagens”.

“No caso de Porto Alegre, nossa rede deveria ser muito mais ampla, com mais dispositivos previstos na rede de atenção psicossocial, como geração de trabalho e renda, CAPS, equipes de saúde mental, economia solidária e centros de convivência e cultura – que Porto Alegre ainda não tem, mas que existem no país. Temos belíssimas experiências no SUS e na nossa rede fazendo um trabalho muito bonito de cuidado em liberdade”, completa a psicóloga.

Em nota enviada à reportagem, a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre “reconhece que há uma necessidade de ampliação da atenção psicossocial no município, sobretudo no pós-pandemia, com o sofrimento de perdas familiares, instabilidade no trabalho e sentimento de medo, que contribuem para aumentar o nível de ansiedade e estresse. Felizmente há equipamentos de destaque e que desenvolvem importante trabalho junto à população, como o GeraPoa. A Secretaria segue com o compromisso de aprimoramento nos serviços de saúde”.

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