Artigos | Literatura

Igiaba no mapa

Change Size Text
Igiaba no mapa A escritora Igiaba Scego. Foto: Divulgação Buzz Editora

Conheci Igiaba Scego na Flip em 2018, ano em que ela participou como convidada na programação principal. Era mais uma edição cheia de inovações, a exemplo do ano anterior, sob a curadoria de Josélia Aguiar, quando a Flip surpreendeu a todos com uma preocupação inédita com paridade de gênero e raça entre os convidados. 

Para além da aura natural que se cria em torno de uma escritora internacional convidada em um grande evento, Igiaba tem uma presença luminosa e uma leveza impressionante na prosódia para dar conta de assuntos pesados como guerras civis na África, migrações e racismo. 

Quando inaugurei o clube de assinaturas da Livraria Baleia, em abril desse ano, comecei a listar os livros mais memoráveis que eu tinha lido recentemente, dando preferência para publicações de pequenas editoras. Meu objetivo desde o início era agradar, obviamente, mas também surpreender os assinantes. E o livro Minha Casa É Onde Estou, publicado pela editora Nós, de Simone Paulino, era um desses livros que a gente lê e nunca mais esquece. Mas em qual das linhas do clube eu poderia encaixá-lo? 

Pode parecer estranho conceber este livro como ficção, por exemplo, uma vez que a autora conta a história da própria família (sendo ela mesma uma das protagonistas), numa espécie de autobiografia cheia de fatos históricos e geopolíticos. Mas qual é a ficção que é totalmente inventada? E se não ficção fosse, isso garantiria uma história 100% fiel à realidade?

Bom, em se tratando de migrações, a proposta talvez seja justamente borrar fronteiras.

E, formalismos à parte, o que chama atenção no livro é a complexidade dos personagens de carne e osso. Eles tomam de assalto o centro da cena e sustentam um enredo emocionante e cheio de verdade.

Os ditadores representam todo um sistema: quando um se retira, outro entra em seu lugar e assim sucessivamente. A mãe de Igiaba representa as centenas de milhares de mulheres vítimas ancestrais dos dogmas patriarcais e que começam a questioná-los. As cidades são personagens interessantíssimas no romance – e aqui, entre Roma e Mogadíscio, não há mocinha nem bandida.

Igiaba escreve como quem sente na pele as coisas que conta.

Depois que enviei o livro para os assinantes, recebi retornos entusiasmados. Alguns me escreveram assim que receberam o livro, emocionados pelo impacto da proposta. Eu não tinha me dado conta quando escolhi (ao menos não conscientemente) que a figura da “casa” ganhou novos sentidos e significados nesta pandemia. Estar em casa, voltar pra casa, ou estar fora de casa. Significados domésticos que passaram a ter analogias sociais e coletivas. Segurança, proteção ou perigo. O corpo como casa. Em coração de mãe sempre cabe mais um? Cuidar do corpo, cuidar da casa. Invasões, hospedeiros, presenças tóxicas. Notem: tudo isso cabia só no título.

Teve também quem me escrevesse depois da leitura, com agradecimentos emocionados. Estavam impactados com a narrativa, impregnados da história de Igiaba, sua família, sua casa e sua cidade. E teve também a frase que uma livreira mais gosta de ouvir: “eu jamais teria conhecido este livro se não fosse a sua indicação”.

Os assinantes terão a oportunidade de conversar com Igiaba neste sábado (15/8), às 14h, e saber mais sobre a sua trajetória e o seu processo criativo. Será o primeiro de uma série de encontros que o clube da Livraria Baleia realizará todo mês, aproximando leitores de seus autores preferidos [confira o serviço ao final do texto].

O clube

Um romance autobiográfico escrito por uma autora italiana de origem somali, ficções de uma autora brasileira da diáspora, uma peça de teatro de autoria indígena em que Mario de Andrade (o próprio, vindo do além) é um dos personagens.

Um ensaio sobre questões migratórias na Europa; uma coletânea de artigos sobre ecofeminismo, bem-viver, decrescimento e direitos da mãe-Terra; um livro de crônicas das encruzilhadas, o racismo religioso, a literatura nas novelas e a memória do feminismo negro no Brasil.

Um poeta do mato (ou da mata), poemas para as folhas que caem, uma poeta comunista, poemas para meninos amados, uma poeta “cuírlombola”, poemas para o fim do mundo.

Feminismo e economia na América Latina, a legalização do aborto na França, o feminismo brasileiro em “pretuguês”.

Estas são as pistas ou temas dos livros enviados até agora no clube de assinaturas da Baleia, todos publicados por pequenas e bravas editoras brasileiras, entre elas: Nós, Kuanza, Elefante, Bazar do Tempo, Chão da Feira, Macondo, Garupa, Cepe e Criação Humana.

Mas não é só isso: no clube da Baleia, o livro funciona como um disparador temático para todo um universo que orbita em torno dele e das questões estéticas e políticas que ele levanta. Por meio de um qrcode (ou link), o assinante acessa uma página especial onde são apresentados outros conteúdos em texto, vídeo, imagem ou som, que propõem outros jeitos de ler o mesmo livro a partir de outras perspectivas.

A escolha dos títulos é feita por mim, bem como a produção dos conteúdos e dos pacotes para envio, geralmente preparados ao som de Gilberto Gil.

Encontros do clube:

Neste sábado (15/8), às 14h, os assinantes do clube da Livraria Baleia terão um encontro especial com a escritora italiana Igiaba Scego. Nascida em Roma, em 1974, filha de pais somalis, formou-se em literatura estrangeira na Universidade La Sapienza e trabalha como jornalista e escritora, colaborando com jornais como Il Manifesto e Internazionale, escrevendo sobre assuntos de seu interesse, como imigração e cultura africana

Como escritora, ganhou diversos prêmios e participou de eventos importantes, como a Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, em 2018. Dela, a editora Nós publica Minha casa é onde estou, Adua e Caminhando contra o vento.

No dia 11 de setembro, às 11h, quem conversa com os assinantes do clube é Adelaide Ivánova, poeta nascida no Recife em 1982. É ativista política e jornalista, trabalha com poesia, fotografia e tradução. Edita o zine anarco-feminista MAIS PORNÔ, PFVR! e é cofundadora da RESPEITA! – coalizão de poetas e slammers brasileiras. Tem três livros publicados. Em 2018 foi vencedora do Prêmio Rio de Literatura com O Martelo (Garupa, 2017). Polaroides e 13 nudes saíram em 2019, pela editora Macondo. Desde 2011, vive na Alemanha, onde ganha a vida como modelo-vivo, segurança de teatro, baby-sitter e garçonete.

PUBLICIDADE

Esqueceu sua senha?