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A vida passa na tela do Cine Marrocos

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A vida passa na tela do Cine Marrocos Kouotou Yamaya. Foto: Loiro Cunha/Divulgação

O filme Cine Marrocos (2018), dirigido por Ricardo Calil, estreia nesta quinta-feira (3/6) nos cinemas. O documentário mostra brasileiros sem-teto, imigrantes latino-americanos e refugiados africanos – moradores do histórico cinema de São Paulo – que recriam cenas de filmes clássicos, apresentados mais de 60 anos antes no local. O longa venceu o É Tudo Verdade em 2019. Neste ano, o diretor conquistou novamente o prêmio principal do festival de documentários com Os Arrependidos (2021), codirigido com Armando Antenore.

Cine Marrocos também foi premiado com o Golden Dove na categoria Next Master no DOK Leipzig, festival de documentários mais antigo do mundo, na Alemanha, em 2018, e eleito o Melhor Documentário no FICG – Festival Internacional de Cinema de Guadalajara, no México, em 2019.

O passado do Cinema Marrocos, no centro de São Paulo, foi glorioso: em 1954, foi considerado o melhor e mais luxuoso cinema da América do Sul, responsável por sediar o primeiro festival internacional de cinema do Brasil, com participação de astros de Hollywood e mestres do cinema. O evento exibiu clássicos como Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder, A Grande Ilusão (1937), de Jean Renoir, Júlio César (1953), de Joseph L. Mankiewicz, Noites de Circo (1953), de Ingmar Bergman, e Pão, Amor e Fantasia (1953), de Luigi Comencini. Em 2021, completam-se 70 anos desde a criação do espaço, inaugurado em janeiro de 1951. 

Muiraquitã Filmes/Divulgação

Quando a equipe do Cine Marrocos pisou pela primeira vez no cinema, em 2015, o local estava ocupado por dois mil sem-teto de 17 países, depois de passar 20 anos de portas fechadas. Eles dormiam em quartos provisórios nos corredores do cinema e no prédio acima e viviam sob a ameaça de perder suas casas do dia para a noite, devido ao pedido de reintegração de posse feito pela prefeitura. Com a ajuda dos moradores, a equipe do filme reabriu o Cine Marrocos, exibiu os filmes do festival de 1954 e convidou os moradores para uma oficina de teatro.  

“Esse conceito nos permitiu reunir universos que pareciam distantes entre si: passado e presente, documentário e ficção, ostentação e precariedade, luta por abrigo e invenção artística. Um único projeto permitiu que a equipe abordasse vários assuntos que nos interessam e preocupam: a desigualdade social, o fim dos cinemas de rua, o preconceito contra os sem-teto, os imigrantes e os refugiados”, explica Calil, que também assina o roteiro do filme. “O cinema deve ser para todos – tanto para a elite que frequentou o Cine Marrocos no festival de 1954, quanto para os moradores da ocupação. As filmagens foram uma maneira de reocupar o edifício não apenas fisicamente, mas também simbolicamente”, acredita o realizador.  

Junior Panda Badibanga. Foto: Muiraquitã Filmes/Divulgação

No final da oficina, 30 deles reencenaram cenas famosas dos filmes a que assistiram, emprestando seus corpos, memórias e talentos para reinventar papéis famosos de estrelas do cinema como Gina Lollobrigida, Vittorio de Sica, Gloria Swanson e Harriet Andersson, entre outros. O cantor camaronês Kouotou Yamaya transformou o monólogo de Marco Antônio em Júlio César, originalmente falado por Marlon Brando, em um rap; o jornalista congolês Junior Panda, que foi perseguido pela ditadura de seu país, recriou em lingala – língua do Congo – o papel de Jean Gabin em A Grande Ilusão; a brasileira Volusia Gama, ex-bailarina, tornou-se Norma Desmond em Crepúsculo dos Deuses.

Muiraquitã Filmes/Divulgação

Na entrevista exclusiva a seguir, Ricardo Calil comenta o filme Cine Marrocos, reflete sobre o flerte do documentário com a ficção – e vice-versa – e adianta seu próximo projeto: “Um documentário sobre um coveiro aqui de São Paulo, chamado Osmair Cândido, mais conhecido como Fininho, que tem uma particularidade: ele é formado em filosofia”.

Como surgiu a ideia de organizar uma oficina de atuação para que os ocupantes do prédio recriassem cenas de clássicos filmes exibidos em 1954 durante o Festival Internacional de Cinema do Brasil?

A história do filme começa quando eu leio uma notícia em 2015 sobre essa ocupação no Marrocos, que sediou esse grande festival internacional de cinema em 1954. Eu marco uma visita à ocupação, era um espaço muito interessante, mas tinha uma particularidade que a sala de cinema estava fechada. O saguão e o prédio acima estavam ocupados, mas a sala estava fechada. Então, já nessa visita surgiu o desejo de reabrir o cinema e exibir os filmes de 1954, que representam o auge do Marrocos. Como havia o desejo nosso de reocupar aquela sala, a primeira forma foi exibindo filmes e convidando os moradores para serem os espectadores. Mas a gente achou que a ocupação total daquele lugar como um espaço simbólico e não apenas físico seria também que eles ocupassem a tela. Daí surgiu a ideia de fazer uma oficina e de convidá-los para que eles reinterpretassem as cenas, virassem as estrelas do nosso filme e terminassem na tela grande, que é o espaço mais nobre do cinema.

Como foi construída a relação de confiança com os personagens do filme? Vocês tiveram pleno acesso ao cotidiano dos moradores?

A gente fez primeiro um corpo a corpo para convidar os moradores para as sessões, ficamos panfletando essas sessões antes na porta da ocupação, contando um pouco a história do cinema, do festival e que a gente ia exibir os filmes desse festival. Nessas sessões, a gente convidou as pessoas para a oficina. Daí, com as 50 pessoas que foram conversar com a gente, contamos o que queríamos fazer, perguntamos o que elas tinham achado do filme, o que elas sabiam de cinema. Então fizemos essa oficina durante um mês com 30 desses moradores. Foi o momento em que as relações se aprofundaram, em que se criou uma liga entre a equipe e os moradores. As histórias de vida deles foram surgindo enquanto eram entrevistados mais longamente durante a oficina. Foi esse processo que criou a empatia e a confiança.

Ricardo Calil dirigindo Valter Machado. Foto: Loiro Cunha/Divulgação

A heterogeneidade do grupo de pessoas reunido na ocupação e a riqueza dramática de suas histórias pessoais chamam a atenção no filme. Qual foi o critério para selecionar os personagens que teriam destaque no documentário, além da participação na oficina de interpretação?

Tivemos um primeiro papo com eles, para conhecê-los um pouco. Durante as entrevistas com esses 30 moradores, fomos descobrindo as histórias de vida deles, que eram muito diferentes e ricas, origens muito distintas, muitos refugiados africanos, alguns imigrantes sul-americanos, brasileiros de diferentes lugares e trajetórias. Acho que quem foi ganhando mais destaque no filme foram aquelas pessoas que tiveram condições de mergulhar mais fundo nas oficinas e se dedicar mais aos personagens, trazendo a história de vida delas para os personagens também. Foi um processo orgânico, natural. Houve pessoas que fizeram um mergulho mais intenso na oficina e naturalmente foram ganhando os papéis, se sobressaindo por essa entrega.

A situação irregular dos moradores do Cine Marrocos e a inevitável posição de marginalidade social da ocupação acabam tendo dramáticos desdobramentos judiciais e policiais. Como essa situação de constante instabilidade e os episódios ocorridos durante a rodagem influenciaram no projeto do filme?

Esse filme propôs aos moradores criar um intervalo de ficção, de fantasia no meio da vida deles, que é muito dura, uma realidade muito precária, com essa possibilidade de perder o teto de um dia para o outro. A gente criou esse espaço muito sagrado da arte, da ficção, mas é claro que nunca conseguíamos deixar a realidade totalmente de fora. Esses desdobramento citados, tanto a prisão das lideranças quanto a reintegração de posse, afetaram a vida não só da ocupação como um todo, mas a vida de cada uma das pessoas que moravam lá. Então, eu acho que um pouco o jogo do filme é entre a ficção que a gente propôs e eles abraçaram e a realidade que estava sempre espreitando, batendo à porta, tentando entrar. No final do filme, infelizmente entrou com tudo, de uma maneira muito triste e violenta, dissolvendo de alguma forma o intervalo de ficção que a gente tinha proposto.

Joseph Ojong Akem. Foto: Muiraquitã Filmes/Divulgação

Que semelhanças e diferenças você identifica entre Cine Marrocos e Era o Hotel Cambridge, filme de Eliane Caffé ambientado também em uma ocupação no centro de São Paulo de um prédio icônico da cidade e que igualmente instiga seus moradores a atuarem dramaticamente para as câmeras?

Acho que tem muitos parentescos temáticos entre eles. São filmes sobre ocupações em prédios históricos, com grande presença de estrangeiros. Tem parentescos também nos procedimentos, nesse trabalho justamente na fronteira entre realidade e ficção e o uso de atores amadores para fazer certas cenas. O que eu acho muito interessante no Era o Hotel Cambridge é que é um filme de ficção que tem um lado documental muito forte. Se você quer entender como é uma ocupação por dentro, como se organiza, ele é o melhor filme para se compreender, um filme de ficção. Cine Marrocos, por sua vez, é um documentário que tem uma aposta muito forte na ficção. Acho que isso é um ponto forte do filme. São filmes aparentados, mas que tomam caminhos quase inversos em um certo sentido, quer dizer, Era o Hotel Cambridge é uma ficção que ruma para o documentário, enquanto Cine Marrocos é um documentário que ruma para a ficção. Mas as lembranças do Cambridge sempre me deixam feliz, porque é um filme que eu admiro. Gosto quando lembram dele também.

Você tem notícia de como vivem atualmente ao menos alguns do personagens de Cine Marrocos?

Na última terça-feira, dia 1º de junho, a gente fez uma pré-estreia com equipe e moradores aqui em São Paulo. Vieram personagens muito importantes do filme, como o Valter Machado, que é iluminador teatral, o Fagner e a Tatiane, que fizeram as cenas do Noites de Circo muito lindamente, o Yamaya, que é o camaronês que criou o rap em cima do monólogo do Marco Antônio no filme Júlio César, membros da equipe também. Foi um encontro muito bonito. A gente já tinha se reencontrado ao vivo na sessão do É Tudo Verdade. Muitos deles eu mantenho contato, encontro pessoalmente, e quase todos os personagens principais que estão ali eu mantenho contato pela internet. Alguns deles, os refugiados africanos, mudaram de país. O Panda, por exemplo, que é o jornalista do Congo, está no Canadá hoje; o Joseph, cujo pai é assassinado em Camarões pelo Boko Haram (grupo terrorista fundamentalista islâmico) se sentiu seguro finalmente para voltar ao país e está lá; a Dulce está em Cabo Verde, visitando o país dela, mas mora aqui em São Paulo. Enfim, sei de todos. Acho que a maioria está melhor hoje do que estava na época da ocupação, graças a Deus. Mas estão aí batalhando pelo dia a dia, pelo sustento, pela sobrevivência.

Muiraquitã Filmes/Divulgação

Uma Noite em 67, Narciso em Férias e Os Arrependidos, três de seus documentários mais recentes, são bastante diferentes entre si e em relação a Cine Marrocos. Para além dos depoimentos de personagens em formato de entrevista, presentes em todos esses títulos citados, que outros pontos em comum e interesses similares você acredita serem recorrentes em seus filmes?

Todos os filmes são baseados de alguma forma no cinema de conversa, que o Eduardo Coutinho (documentarista, diretor de filmes como Santo Forte e Edifício Master) chamava de conversa em vez do termo entrevista. Para essas conversas todas, o Coutinho é uma referência muito importante. Acho que isso une esses filmes filmes todos. Há alguns outros pontos que unem os meus filmes, mas não todos. Eu gosto muito de trabalhar com arquivo, por exemplo, Uma Noite em 67 e Os Arrependidos têm muito arquivo, Cine Marrocos tem um pouco, mas Narciso… não tem quase nada. Então tem sempre uma ponto faltando. Eu fiz muitos filmes ligados à época da ditadura, mas Cine Marrocos não. Ele está essencialmente em dois tempos: em 1954 e em 2015, que foi quando a gente filmou. Gosto da brincadeira de ficção e realidade, que está um pouco no Cine Marrocos e em Eu Sou Carlos Imperial. O que une mesmo é esse cinema de conversa, que tem uma influência muito forte no Coutinho. Acho que o Cine Marrocos é um ponto um pouco fora da curva na minha trajetória, porque é um filme que trabalha com outras camadas, com a questão da reencenação, com esse jogo de ficção e realidade mais aprofundado, que ouve personagens anônimos. Enfim, é um filme diferente na minha trajetória. Mas essa é uma trilha aberta nessa fronteira entre realidade e ficção que me interessa muito, sempre me interessou, e que eu pretendo trilhas outras vezes depois desssa experiência feliz que foi o Cine Marrocos.

Quais são seus próximos projetos?

Tenho alguns projetos voando, mas dá para falar de um deles que eu comecei a filmar com dois amigos queridos. Um documentário sobre um coveiro aqui de São Paulo, chamado Osmair Cândido, mais conhecido como Fininho, que tem uma particularidade: ele é formado em filosofia. Então ele tem uma visão muito prática e bonita do que é a morte, da lida diária com a morte, mas também tem uma visão filosófica desse mesmo tema, muito interessante e bonita. A gente tem registrado ele lidando com os mortos da pandemia. Vamos ver se o arco dessa história se fecha ainda neste ano, se Deus quiser, pra gente botar esse filme no mundo no ano que vem.

Muiraquitã Filmes/Divulgação

Cine Marrocos: * * * *

COTAÇÕES

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