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As dúvidas sobre a imunidade na Covid-19

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As dúvidas sobre a imunidade na Covid-19

A esmagadora maioria das infecções que temos ao longo da vida são resolvidas pelo sistema imune inato. Este sistema engloba um conjunto de células, moléculas e processos que agem sempre da mesma forma, de forma genérica e automática, independentemente do tipo de ameaça ao corpo. O exemplo clássico é aquele corte de faca na mão que, em poucas horas, incha, inflama e dói – e em poucos dias nem existe mais.

Com o sistema imune adaptativo, a história é diferente. Ele entra em cena nas raras ocasiões em que um microrganismo invade nosso corpo e escapa ao pronto ataque do sistema imune inato. O corpo, percebendo que este invasor – digamos, um vírus – não foi aniquilado pelas nossas defesas básicas, compila informações acerca do intruso e as envia aos órgãos responsáveis pela imunidade adaptativa, que será encarregado de desenvolver uma resposta desenhada especialmente contra este microrganismo.

Boa parte desse processo ocorre no timo, um pequeno órgão localizado um pouco abaixo do pescoço, no centro do nosso tórax. O timo participa do desenvolvimento dos linfócitos, que são as células protagonistas da resposta imune adaptativa. Graças a um fascinante processo de variabilidade biomolecular, o timo consegue gerar, em teoria, linfócitos aptos a atacar qualquer patógeno potencialmente existente na natureza.

Uma vez que o corpo consegue gerar um linfócito específico contra o invasor, esse linfócito passa a comandar a resposta imune. Isso pode se dar de várias maneiras, de acordo com o tipo de organismo invasor. Estes ataques podem ser diretos, na forma de linfócitos citotóxicos, ou indiretos, com um trabalho orquestrado por linfócitos auxiliares.

Entre as formas indiretas está, de modo muito importante, a produção de anticorpos. Os anticorpos são complexas estruturas proteicas produzidas por linfócitos e têm por função facilitar o ataque do corpo contra os invasores. Os anticorpos, por exemplo, ajudam a localizar o invasor, tornando-o mais visível ao corpo e ajudando nossas demais células de defesa na tarefa de aniquilá-lo.

A imunidade não é exatamente uma questão de sim ou não

Uma das grandes características do sistema imune adaptativo é sua capacidade de gerar memória imunológica. O processo de gerar um linfócito específico contra um invasor pode ser trabalhoso, mas este esforço não precisará ser integralmente repetido caso o mesmo invasor volte nos infectar. Isso ocorre pois, uma vez resolvida a infecção, os linfócitos e anticorpos produzidos permanecem disponíveis, num espécie de reserva do sistema imune adaptativo. Quando isso acontece, dizemos que estamos imunizados.

Ocorre, porém, que a imunização não é um processo dogmático. Embora seja verdade que tenhamos reservas de linfócitos e anticorpos contra infecções sofridas no passado, estas reservas nem sempre se mantêm permanentemente suficientes. Pode ocorrer de perdermos estas reservas, caso nosso corpo considere que elas não são mais necessárias – quando, por exemplo, ficamos muito tempo sem ter qualquer tipo de contato com determinado microrganismo.

Outro problema advém da altíssima especificidade do sistema imune adaptativo. Quando o corpo procura no timo um linfócito específico para um invasor, ele faz isso usando uma porção específica da estrutura do vírus (digamos, parte de uma proteína que está presente no exterior do vírus). Muitas vezes, essa “carteira de identidade” do invasor é a melhor forma possível de identificá-lo, e os linfócitos e anticorpos daí decorrentes funcionarão otimamente; pode ocorrer, no entanto, de o corpo escolher uma porção menos representativa do invasor, gerando uma resposta imune menos eficiente.

Os desafios não param por aí. Mesmo que o corpo desenvolva uma resposta adaptativa robusta e adequada, isso não é garantia de que essa memória imunológica seja eficiente contra futuras infecções. Tal como nós, vírus, bactérias e demais invasores estão sujeitos a evolução e mutação. Não raro ocorre que uma mutação provoque uma mudança estrutural ou funcional no microrganismo de modo a tornar nossa memória imunológica ineficaz. Isso ocorre sazonalmente com o vírus da gripe, por exemplo.

Quais são, então, as dificuldades do sistema imune adaptativo com a Covid-19?

O SARS-CoV-2 é o mais recente membro da família dos coronavírus. Há outros seis conhecidos que conseguem infectar seres humanos. Quatro deles (batizados 229E, OC43, NL63 e HKU1) são responsáveis por resfriados comuns. Os dois coronavírus restantes são os causadores das epidemias de SARS, em 2003, e de MERS, em 2012.

Como o SARS-CoV-2 é extremamente recente, o pouco que sabe acerca de sua imunidade é em parte inferido a partir do conhecimento acerca de seus parentes. Estes dados – que são preliminares e incompletos – nos permitem caracterizar o SARS-CoV como um organismo relativamente desafiador para o sistema imune.

Uma das razões é a alta taxa de mutabilidade do novo corona, que é um vírus de RNA simples (isto é, que tem seu material genético codificado em uma única fita de ácidos ribonucleicos). Sabe-se que o material genético dos vírus de RNA é mais instável que o de vírus de DNA (que tem seu material genético em fita geralmente dupla e formado por nucleotídeos de composição similar à dos animais).

Essa instabilidade genética é um problema em potencial, pois o vírus pode mutar a ponto de alterar sua forma de apresentação no organismo humano, driblando assim uma eventual memória imunológica construída com outra cepa do mesmo vírus.

É em grande parte por isso que, ao que tudo indica, o organismo humano não forma uma imunidade duradoura contra os vírus da família dos coronas. Estudos anteriores, com foco nas cepas mais agressivas da SARS e da MERS, indicaram imunidade de alguns meses a poucos anos.

É fundamental conhecer o perfil imunológico de uma população

Um exemplo da nossa ignorância sobre a imunidade dos coronavírus se deu logo no início da pandemia, quando alguns países apostaram na hipótese da “imunidade de rebanho”. Em termos imunológicos, eles acreditavam que o SARS-CoV-2 geraria uma resposta imune tão forte e sólida a nível do indivíduo que, coletivamente, uma população se tornaria rápida e naturalmente imune ao vírus.

Esse salto do individual para o coletivo se mostrou, na prática, bem mais complexo que na teoria. O resultado foi que muitos desses países abandonaram a estratégia, à medida que seus sistemas de saúde colapsavam com casos graves de Covid-19 esgotando os leitos de tratamento intensivo.

Um componente adicional desta complexidade são supostos casos de reinfecção registrados na Coreia do Sul. Embora não se saiba ao certo se são casos de reinfecção ou de reativação de infecção prévia, estes relatos lançam ainda mais dúvidas sobre como nosso corpo gera imunidade contra o vírus.

Todas estas lacunas, todavia, não implicam que, ao longo de alguns meses ou poucos anos, uma população não consiga se tornar resistente ao SARS-CoV-2. De fato, muitos epidemiologistas apostam que isso é o que gradualmente irá ocorrer. É nesse sentido que se insere a pesquisa liderada pela UFPel, que está mapeando, por amostragem, a imunidade da população.

Este estudo irá mapear, a nível populacional, a geração de anticorpos contra o SARS-CoV-2. De especial importância é o caráter cronológico da pesquisa: serão realizadas amostras em diversos momentos espaçados entre si, e isso é especialmente importante porque, como vimos, o desenvolvimento de anticorpos é um processo demorado. A tendência é que, com o passar das semanas, uma proporção cada vez maior de indivíduos tenha gerado os anticorpos, o que é fundamental para compreender qual o grau de trânsito do vírus entre as pessoas, bem como o status imunológico da população como um todo.

Vale observar que o teste de anticorpos, justamente, tem uso e sentido muito distintos do teste usado atualmente para determinar se um indivíduo está ou não com a Covid-19. O teste de anticorpos procura pela resposta imune decorrente de uma infecção prévia, que pode ter ocorrido há muitas semanas. O teste do RT-PCR, por sua vez, procura sinais de proteínas virais, e indica a presença ou ausência do vírus no momento do teste. O RT-PCR, portanto, nada diz sobre resposta imune.

A alternativa das vacinas

Uma segunda e importantíssima maneira de se gerar imunidade são as vacinas. As vacinas simulam uma infecção, colocando o corpo em contato com organismos inativados (como se fossem “esqueletos” ou “restos mortais” de um vírus, virtualmente sem risco) ou com organismos amenizados (em estado de latência, “dormentes”, e com baixo risco de provocar infecção).

As vacinas, que em teoria podem ser úteis contra qualquer tipo de microrganismo, funcionam muito bem contra muitos vírus – inclusive com vírus instáveis, como o H1N1, responsável pelos ciclos sazonais de gripe. Na verdade, as vacinas são tradicionalmente muito eficientes no tratamento contra as infecções virais.

Cumpre notar que, até hoje, não foram desenvolvidas vacinas para os vírus da família dos coronas. Isso em parte se explica por desafios próprios que o sistema imune tem ao lidar com o sistema respiratório, mas também pode ser creditado ao fato de que os coronavírus que sazonalmente circulam entre nós não são especialmente letais.

Uma boa notícia é que já se conhece a sequência genética do SARS-CoV2. Isso é importante pois, para se criar um anticorpo, precisamos saber a qual parte do vírus o anticorpo irá se ligar. Há mais de 100 vacinas sendo estudadas, e cinco já se encontram em testes de fase I.

O desafio do desenvolvimento de uma vacina envolve alguns passos similares ao que faz o sistema imune adaptativo frente a um invasor: é necessário escolher uma “carteira de identidade” que seja representativa, estável e facilmente utilizável contra o organismo do qual queremos nos defender. Isso leva tempo, e é improvável que haja vacinas seguras contra a Covid-19 antes de meados de 2021, no mais otimista dos cenários.


*Felipe é jornalista e estudante de Medicina na UFRGS. Você pode contatá-lo pelo [email protected]

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