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Bioética e Covid-19: como tomar decisões que afetam vidas?

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Bioética e Covid-19: como tomar decisões que afetam vidas?

Imaginemos a seguinte situação. Em um hospital de alta complexidade, um leito da unidade de tratamento intensivo (UTI) acaba de ser liberado. Na fila, há dois pacientes da Covid-19 em estado grave e necessitando de respiração artificial para sobreviver. O primeiro é um jovem de 20 anos, sem comorbidades, e o segundo é um idoso de 80 anos, hipertenso, diabético e em tratamento oncológico. Qual deles irá para a UTI?

A situação é hipotética, mas representa desafios reais enfrentados diariamente por equipes assistenciais em hospitais de todo o mundo. Trata-se de um dilema permanente na gestão da Saúde, mas tornado mais evidente e sensível no contexto atual da pandemia. No nosso exemplo, a decisão sobre qual paciente receberá a chance de ser tratado com o melhor recurso disponível é baseada, sim, em critérios técnicos, mas nem mesmo o mais cientificamente fundamentado dos protocolos está isento de falhas, limitações, ambiguidades e incertezas. É possível, afinal, definir se uma vida vale mais do que a outra?

É desse hiato tão frequente entre a técnica e o ser humano que surge a bioética. “É um campo interdisciplinar que visa refletir sobre a adequação de ações que envolvem a vida e o viver das pessoas e do planeta”, define José Roberto Goldim, biólogo e chefe do Serviço de Bioética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Embora seja possível que muitos de nós nunca tenhamos ouvido falar em bioética, isso não faz com que não estejamos rotineiramente entrando em contato com ela. De fato, muitas das notícias sobre a Covid-19 são permeadas de questões bioéticas, e até mesmo o modo como lidamos, enquanto cidadãos, com a pandemia, envolve decisões bioéticas mais ou menos conscientes.

Para ajudar a entender algumas dessas questões, conversamos com três profissionais das áreas da Biologia, Medicina e Filosofia. Ao final do texto, você encontra links para as entrevistas completas.

Desafios bioéticos de uma pandemia: unificação de filas e triagem

Um dos exemplos mais claros é a unificação das filas de atendimento de pacientes atendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e pela medicina privada. O debate surgiu no Brasil à medida que leitos da rede pública começavam a se esgotar, ao passo que alguns hospitais da rede privada seguiam com vagas disponíveis. Aqui, o dilema pode ser expresso da seguinte forma: é correto manter a lógica da medicina privada e ocupar seus leitos somente mediante pagamento, ou o cidadão sem recursos financeiros tem o direito de usá-lo?

As filas foram, de fato, unificadas em muitas cidades e Estados onde houve esgotamento da rede pública. Na verdade, esse nem é um tema novo para a realidade brasileira: a fila de pacientes na espera de doação de órgãos já é unificada, e este recurso está inclusive previsto na lei fundadora do SUS. Porém, esta execução nem sempre é pacífica e simples, como atestava a resistência do ex-ministro da Saúde Nelson Teich ao que chamou de “tomada” dos leitos privados.

“Em uma situação de emergência e de escassez de recursos capazes de salvar vidas humanas, parece-me que essa medida é justa e igualitária”, defende Marco Azevedo, médico e professor de Filosofia (Unisinos). Na sua opinião, a unificação “evitaria criar situações de disputa desigual por recursos em situações para as quais ninguém está preparado para tomar a decisão voluntária de escolher pelo sistema privado em alternativa ao público”.

Se o debate acerca da unificação das filas é relativamente consensual, a questão envolvendo os protocolos de eleição dos pacientes para a UTI é bastante mais complexa. Azevedo e três colegas elaboraram, recentemente, uma proposta de triagem de pacientes, com base em protocolos internacionais de escores clínicos. Ele ressalta que é um tema difícil, e que muitas das decisões tomadas nestes protocolos são fundamentadas em premissas filosóficas sobre a vida.

“(O tema da triagem) envolve questões importantes sobre ética da alocação de recursos, e questões complexas sobre como devemos comparar (e se é possível comparar) vidas humanas”, diz. “De um ponto de vista consequencialista, em emergências deveríamos dar prioridade às pessoas com maior chance de sobrevivência após o tratamento, já que o custo de dar prioridade aos pacientes mais graves levaria a piorar a condição dos menos graves, resultando em mais mortes prováveis em termos globais.”

Além do hospital: indivíduo, sociedade e o “direito de se infectar”

Triagem e unificação de filas são temas críticos que dizem respeito, essencialmente, à rotina de profissionais de saúde e gestores públicos. Porém, muitas das nossas próprias decisões enquanto cidadãos (e não como pacientes) em um contexto de epidemia são carregadas de problemas bioéticos. Isso faz da bioética não apenas um tema importante para o contexto hospitalar, mas para o debate público como um todo.

Desde o início da pandemia, o governo federal, apoiado por algumas correntes de empresários, defendeu a necessidade de manutenção da atividade econômica, à revelia dos riscos sanitários envolvidos e sob o argumento de que “a economia não pode parar”. Em que pese que a maioria dos governos estaduais e prefeituras efetivamente reduziram a atividade econômica, a posição simplista do presidente foi amplamente criticada.

“Entendo que essa seja uma equação complexa, na medida em que sem vida humana não temos economia nem mercado, mas também sem dinheiro não podemos adquirir bens, incluindo medicamentos e insumos que são exigidos para manter nossos sistemas de saúde, públicos e privados”, analisa Nythamar de Oliveira, professor de Filosofia (PUCRS). “Infelizmente, temos assistido a um embate midiático entre um presidente despreparado que desprezava a gravidade da pandemia e lideranças políticas que defendiam medidas severas de fechamento do comércio e de isolamento social.”

A tensão entre economia e saúde – que é vista por Goldim como um “falso dilema” – abre caminho para questões ainda mais fundamentais acerca dos direitos e das responsabilidades individuais em um contexto de pandemia. De fato, parte dos argumentos a favor da manutenção de atividades econômicas se fundamenta no direito da liberdade individual, como defendeu recentemente o ministro da Economia, Paulo Guedes.

No entanto, até que ponto, em uma pandemia, podemos manter nosso direito de liberdade de ação? As evidências apontam que o cumprimento do isolamento social pelo maior número possível de indivíduos contribui para a redução da velocidade do contágio, o que desafoga o sistema hospitalar. Portanto, até mesmo um indivíduo que pudesse ter certeza de não estar contaminado (afinal, muitos contaminados são assintomáticos) teria o dever de permanecer o mais isolado possível, pois, quanto mais exposto, maior é a possibilidade de contrair a doença e transmiti-la a outras pessoas.

Questionado sobre esse tema, Azevedo faz referência a Ronald Dworkin, filósofo norte-americano. “Dworkin considerava que um interesse coletivo somente poderia preponderar sobre um direito individual se a proteção desse interesse comum estiver justificado justamente no ideal de proteger os direitos individuais em questão”, diz ele, explicando de que modo uma obrigação como usar máscaras poderia se sobrepor ao direito de não usá-las.

Teríamos, assim, um interesse coletivo, que é o da contenção da pandemia, e ele teria o poder de se sobrepor ao direito individual (de sair de casa ou se aglomerar, por exemplo) justamente em nome da garantia dos direitos individuais, como a segurança sanitária de cada pessoa. A abdicação de um direito individual, portanto, pode ser uma maneira de se garantir outros direitos individuais, numa situação extrema. São tensões que podem parecer contraditórias, como mostram pessoas que advogam pelo “direito de se contagiar”.

“Passaportes imunológicos” e além

Num horizonte não muito distante, pairam também novos dilemas bioéticos. Um dos mais comentados é a possibilidade de se criarem “passaportes imunológicos”, isto é: a requisição, por parte de alguma autoridade estatal ou policial, de uma comprovação de que um indivíduo está imunizado contra a Covid-19 para que ele possa circular pela cidade. Trata-se de uma proposta que tem como objetivo possibilitar que um maior número de pessoas circule sem risco, mas que abre caminho para a criação de novos privilégios em sociedades já bastante desiguais.

Para mais detalhes sobre este e outros temas, você pode ler a íntegra das entrevistas que fizemos com Goldim, Azevedo e Oliveira. Por email e whatsapp, fizemos perguntas similares aos três, com breves adaptações para a realidade profissional de cada um. São entrevistas longas, bastante detalhadas e, portanto, ricas. Desejamos boa leitura.

*Felipe é jornalista e estudante de Medicina na UFRGS. Você pode contatá-lo pelo [email protected] 


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