Juremir Machado da Silva

A guerra da Ucrânia vista por um russo em Paris

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A guerra da Ucrânia vista por um russo em Paris Foto: Kremlin/Divulgação

As milícias Wagner deram um susto em Vladimir Putin. Ele usou esse grupo de mercenários de ultradireita para atiçar fogo em Donbass, região ucraniana de maioria russa. A guerra andou e Putin viu sua massa de manobra voltar-se contra ele por motivos escusos, mas cristalinos: poder. Em Paris, o russo Ilia Kiriya, especialista em comunicação e mídia, membro do Conselho Editorial da revista Hermès, dirigida pelo sociólogo Dominique Wolton no Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS), não hesitou em designar, quando o abordei, quem tem razão no conflito: “A Ucrânia”, disse. Aproveitei para questioná-lo sobre como vê o relato da guerra nos jornais ocidentais. Segundo ele, há certo viés na medida em que a cobertura é francamente favorável aos ucranianos. Essa afirmação, porém, não altera para ele o principal: a Rússia invadiu a Ucrânia. Ponto final.

Há três meses, Kiriya mudou-se para a Universidade de Grenoble. A vida na Rússia para quem tem opiniões como a dele poderia ficar perigosa. Criticar o governo e o seu papel no conflito podem dar cadeia. Quem o faz, pode até mesmo ser considerado traidor. A população russa, explicou, está saturada da guerra, mas consome o que a imprensa oficial lhe serve e, no geral, apoia a visão fornecida por Vladimir Putin. Mas, afinal, por que Putin atacou a Ucrânia? “Antes de tudo para ter um inimigo externo capaz de lhe permitir criar uma situação interna favorável eliminação de qualquer oposição”. E aquela ideia de retomar o projeto da “Grande Rússia” ou algo do gênero embutido na mitologia da nação? “Uma ideologia que Putin constrói para consumo interno”, esclarece. Nada de muito heroico.

Preciso e direto, Kiriya fulmina com risos impiedosos as teses sobre a desnazificação da Ucrânia: “Isso é ridículo. Não passa de putismo primário, grosseiro, propaganda oficial disseminada por toda parte. Não é sério”. O mesmo tipo de raciocínio ele usa para rechaçar o argumento de que Putin teria agido para salvar a população de Donbass da perseguição ucraniana”. Para Kiriya o antiamericanismo da esquerda ocidental não pode cegá-la. Pensar assim não o impede de caracterizar o presidente ucraniano Zelensky de populista e demagogo. Em outras palavras, se outras palavras são mesmo necessárias, Putin nem sequer tem uma megalomania para chamar de sua ou uma narrativa grandiosa para iludir os tolos. A intenção da operação que desencadeou de seu gabinete não alça voo: rasteja. Resume-se a ter pretextos para sufocar partidos de oposição ao seu regime, calar a boca dos insatisfeitos mais insistentes e silenciar a mídia que o rejeita.

Pergunto se o número de mortos anunciado pelas partes ou divulgado na imprensa corresponde aos fatos, diz que não há como saber. Boa parte da esquerda brasileira não esconde por quem bate o seu coração. É isso que se chama negativamente de ideologia. Ver o mundo a partir de uma lente que distorce os fatos para que eles correspondam a uma narrativa prévia.

Complexidade pode ser frustrante. Quebra lentes e convicções.

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