Juremir Machado da Silva

A inversão do carnaval

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A inversão do carnaval Foto: Ferran Feixas/Unsplash

Numa tarde de janeiro, na praia, Maiara leu que, segundo um grande antropólogo, o carnaval é um ritual de inversão. Na hora, não entendeu bem. Depois, tanto bisbilhotou que a coisa fez sentido. Ou, ao menos, deixou de ser completamente absurda. Durante quatro noites, o mundo (Brasil) vive de cabeça para baixo. Operário vira rei, anônimo brilha na avenida, famoso desaparece na multidão, etc. Mas rei vira mesmo operário? E negro pobre da favela fica com loura rica da Rede Globo? Não encontrou resposta.

A verdade é que Maiara andava entediada e achava que nada havia de novo no mundo. No seu mundo. O casamento não ia bem. Ou ia bem demais. Às vezes, chegava a sonhar com um acontecimento, algo que se passasse fora da tela da televisão, que não fosse mais a vida por procuração. Rogério passava o verão em Porto Alegre, correndo atrás de mulher. Aparecia, no final de semana, com cara de sorro manso. Será que, de fato, traçava alguém? Maiara até duvidava. Em dois dias, conseguiam brigar por dinheiro, pela educação dos filhos e até por uma tal de concepção de mundo, seja lá o que fosse:

— Estamos com dinheiro parado no banco — reclamava Maiara.

— Mas é nossa margem de segurança — esbravejava Rogério.

— Segurança? Dinheiro parado não rende — ensinava ela.

— Mas está investido — insistia ele.

— O melhor investimento é o bom emprego da grana.

Não tinha jeito. Não se entendiam. Rogério até pensou em escrever um ensaio: Uma teoria econômica sexista. O cartão de crédito seria, por exemplo, uma invenção diabólica concebida para certas mulheres:

— Machista — gritava Maiara.

— Que nada. Só constato.

– Machista e burro.

Rogério estava convencido de que as mulheres consideram o negativo do cartão como dinheiro delas e que não gastá-lo significa privar-se de um capital duramente conquistado. Maiara, por seu turno, tinha certeza de que os homens são covardes e destituídos de senso estético. Contentam-se com qualquer porcaria. Rogério tinha uma teoria: os homens traem por curiosidade; as mulheres, por sacanagem. Maiara discordava: os homens traem por estupidez; as mulheres, por dignidade (vingança), pensava.

Foi numa dessas que Maiara resolveu falar da teoria do ritual de inversão para Rogério. Ele deu uma gargalhada:

— Ritual de inversão? Coisa nenhuma. No carnaval, o bom fica melhor ainda; e o pior, muito pior. O carnaval é festa de cachorro comedor de ovelha: quem está acostumado, não perde o hábito; que nunca provou, permanece de fora.

Chocada, mas sem perceber bem a razão, Maiara tomou aquela declaração como uma ofensa pessoal. Em geral, nos bate-bocas com Rogério, ela cedia. No fundo, gostava de vê-lo ganhar quando a disputa ainda era cordial. Ou quase. Sabia que isso era importante para ele. A história, porém, do carnaval não lhe desceu. A coisa ficou, realmente, engasgada. Jurou que se vingaria. Mas de quê? Não sabia. Sabia, sim, só ainda não sabia que sabia.

Quando o carnaval chegou, Maiara sugeriu a Rogério que ficasse em Porto Alegre. Ele se assustou. Era bom demais para ser verdade. Desconfiou tanto da boa nova que não aceitou. Tomou o rumo da praia. Maiara não desistiu. Ao vê-lo entrar na casa da praia, anunciou que passaria o carnaval na casa da mãe, em Porto Alegre. Rogério ficou com a pulga atrás da orelha. Na verdade, um pulgueiro. 

— Vou sem cartão de crédito — disse ela. 

Consolo? De tanto pensar no assunto, Rogério achou que a dispensa do cartão de crédito era a prova cabal de que algo grave estava acontecendo. Comentou com um amigo:

— Ora, cara, isso é tudo muito clichê. Fica frio. Ela só está querendo te assustar. Manda ver aqui na praia mesmo. Rogério não conseguiu. Passou o carnaval olhando televisão. Não viu tanta mulher pelada como pensava. Mas não se importou. Estava alheio, tenso, curioso. Seria ciúme? Não, isso não, se existia alguém fiel era Maiara. Podia até explodir a conta bancária, trair, isso nunca. Maiara tinha classe, não ia se deitar com um desconhecido. Pela primeira vez, Rogério perdeu o sono sem ser por dinheiro.

Maiara deixou o celular na praia. Rogério ligou para o convencional da sogra. Maiara tinha saído com umas amigas. Voltaria tarde. Telefonou para a melhor amiga dela. Não, não a tinha encontrado. Passou o carnaval em transe. Na quarta-feira de cinzas, Maiara voltou. 

— Onde você esteve?

— Por aí.

— Como por aí?

A resposta dela foi de uma suavidade impressionante:

— O carnaval é um ritual de inversão. 

Como falar em carnaval ainda em novembro?

É carnaval fora de época?

Não. É só uma metáfora para a vida pós-eleitoral.

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