Juremir Machado da Silva

Cartas que recebi

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Cartas que recebi Foto: Suzy Hazelwood/Pexels

Nesta vida de jornalista enviei e recebi muitas cartas. Antes do e-mail e do WhatsApp. Dei uma rápida olhada em meus arquivos e encontrei correspondências de gente impressionante: Umberto Eco, Georges Duby, Marguerite Duras, Pierre Bourdieu, Jean Baudrillard, Michel Maffesoli, Edgar Morin, Alain Robbe-Grillet e por aí vai. Recebi e guardei também cartas de importantes intelectuais gaúchos. Uma delas, de 16 de junho de 1995, tem a assinatura de um dos maiores cronistas gaúchos que conheci: Sergio da Costa Franco. Ele dizia:

“Meu caro Juremir. É bom para a província que tenhas voltado e que conserves teu espaço. Na imprensa gaúcha, que hoje quase se resume à ZH, talento e cultura, versatilidade e seriedade intelectual são coisas que raramente andam juntas. E tu tens reunido esses dotes raros”. O mestre, já calejado no ofício, me puxava as orelhas:

“Mas não é de hoje que me preocupo com teus rumos. Quando estávamos nós dois na Zero Hora, eu te adverti que estavas escrevendo demais”. Na sequência, vinha ao ponto mais importante daquele momento: “Hoje, lendo ‘com o pampa na alma”, fiquei preocupado contigo por outros motivos”. Eu havia falado demais em mim e mais ainda nos meus inimigos, que já não eram poucos e seriam mais ainda três meses depois, quando fui demitido da Zero Hora para nunca mais voltar.

Sergio da Costa Franco me pegava pela mão e ensinava: “Quem se projeta, em qualquer setor, vira capim da inveja de dezenas de frustrados. Mas, do vozerio destes, só se pode recolher o que é útil. Pois, convenhamos, o outro sempre pode ter alguma dose de razão. Quanto aos impropérios e à maledicência orquestrada, só podem ter a resposta do silêncio. Ou a contestação que se exercita pela seriedade, pela competência, pelo espírito de justiça, que são os predicados maiores de quem se comunica com o grande público”.

Dono de um texto límpido, leve e irônico nas crônicas, ele sabia manejá-lo também numa carta: “Das ofensas que teus adversários te endereçaram, a única que me levaria ao paroxismo da fúria seria a de ‘imitador do Paulo Francis’. Isso, de fato, é pior que ofender a mãe. Pois o Paulo Francis, para o meu gosto, é o gajo mais intolerável da mídia brasileira e continental”. Paulo Francis foi um Olavo de Carvalho com um texto, quando queria, mais elaborado. Ao final, meu sábio companheiro de manhãs solitárias na redação da Zero Hora recomendava “humildade, dúvida sistemática, tolerância com os contrários e muito cuidado na aceitação de novas bandeiras”.

Recém-chegado da França, onde a crítica à esquerda stalinista era moeda corrente, bati de frente com o esquerdismo dominante e perdi. Eu estava do lado dos Gabriel Boric da época, enquanto o pessoal se focava num antiamericanismo sem brechas. Sergio da Costa Franco ainda me destinava um carinhoso post-scriptum: “Assumi esta liberdade, não só como leitor que te estima, mas também como um ‘velhão’ que poderia ser teu pai”. Releio e me emociono. Eu não estava sozinho. Nunca estive. Não estou. Obrigado, mestre Franco.

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