Juremir Machado da Silva

Elis, inteligência artificial, Volks

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Elis, inteligência artificial, Volks Cena do vídeo da Volkswagen | Reprodução

Olhei o comercial da Volkswagen que, com ajuda da inteligência artificial, junta Elis Regina e sua filha Maria Rita e pensei: comum. A polêmica continuou crescendo. Olhei de novo. Achei banal. Estava pensando errado. Analisava em termos estéticos. Nem sequer via Elis e Maria Rita realmente juntas. O truque me parecia anunciado desde muito tempo e, portanto, incapaz de me surpreender. Era só a nostalgia envelopada com papel tecnológico. Um comercial piegas do Zaffari turbinado pelo GPT ou por alguma ferramenta do gênero. Olhei de novo.

Larguei o estético. Pensei no ético. Alterei o parâmetro no imaginário. Elis aprovaria ser garota propaganda, depois de morta, de uma empresa que apoiou a ditadura militar na qual ela viveu a sua carreira de artista? Nesse comercial a vantagem toda é de Maria Rita. Que direito tem filhos de usar a imagem da mãe, personalidade pública de primeira linha, para ganhar dinheiro ou promover-se? O histórico da Volkswagen, desde o nazismo, não ajuda. Muitos problemas aparecem: a morte já não salva de vexames públicos entre os vivos? Tudo que é possível será feito? Serão lançados novos discos de pessoas mortas com músicas concebidas depois que elas se foram? Nem a morte imporá um direito ao esquecimento, à paz perpétua, ao descanso da mercadoria?

Um elemento me atropelou: o uso da canção de Belchior, Como nossos pais. Para mim é uma das letras mais belas da MPB. Pode essa música que reflete um fosso entre gerações ser usada para simbolizar uma reconciliação em termos, além de tudo, mercantis? De repente, a filosofia áspera de Belchior, o filósofo compositor que botou o pé na rua para não morrer em casa, foi transformada em propaganda de margarina! Uma felicidade empacotada com a marca do sistema que uma geração recusou. Não creio que a letra de Belchior seja de ódio. Não é tampouco um hino ao entendimento familiar. É esse o grande bagulho?

Não. Depois da décima olhada, sempre mais intrigante, concluí que o vídeo vende a alma de Elis a um comprador que nada lhe dará. A inteligência artificial pode servir tranquilamente para saciar nossos piores apetites naturais. O leitor pode investigar sobre o sofrimento de Elis diante das jogadas sujas da ditadura. Cronista, profissional que analisa o cotidiano como quem examina películas de emoção, eu me limito a falar daquilo que se dá a ver como uma provocação: o presente engolindo a rebelião do passado em troca da transferência artificial de números que engordarão contas bancárias totalmente virtuais.

Nas redes sociais, porém, em paralelo aos protestos de intelectuais e de muitos fãs, pululam postagens de encantamento com o vídeo. Maria Rita até agradeceu pelo carinho nas tantas mensagens que recebeu. O criador do comercial não vê sentido nas críticas. Os filhos de Elis não só aprovaram como teriam se emocionado com a ideia. Como diria Guy Debord, “o espetáculo não canta os homens e sua armas, mas as mercadorias e suas paixões”. Nem a morte separa da mercantilização. Aquilo que a natureza separa, o capitalismo junta para triunfar.

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