Pensata

Elis, Maria Rita e Belchior: entre a emoção e o mau gosto

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Elis, Maria Rita e Belchior: entre a emoção e o mau gosto Cena do vídeo da Volkswagen | Reprodução

O vídeo da campanha da Volkswagen que comemora os 70 anos da empresa no Brasil está arrebatando o público e despertando doces recordações. Os detalhes da campanha, capitaneados pelo uso da Inteligência Artificial e da chamada deepfake – capaz de criar montagens realistas com rostos de pessoas – estão sendo cantados e decantados por toda a mídia, fazendo lembrar mais uma vez o quanto a sociedade contemporânea está absolutamente hipnotizada pelo fetiche da tecnologia, que agora pode ser inadvertidamente alçada ao papel de novo Deus e criador das coisas e dos seres. 

É claro que a tecnologia, como tudo o mais no campo da propaganda, está a serviço da emoção. Assim, temos a possibilidade de assistir a um dueto entre as cantoras Elis Regina, ícone da MPB, falecida há mais de quatro décadas e sua nem tão talentosa filha, Maria Rita, esta viva e com um tino comercial que sua mãe provavelmente não teria.

A peça mescla o inusitado encontro de mãe e filha com imagens típicas de qualquer propaganda que se destine a capturar lembranças juvenis ou adultas de caráter universal – “como eu vivi e tudo o que aconteceu comigo”: fuscas andam na beira do mar, amigos fazem festas em praias ou em parques, sob frondosas árvores, mães amamentam e trocam fraldas de filhos, amizades e crushes encontram nos carros espaço para momentos de comunhão, intimidade ou, por que não, sexualidade. Pontes, estradas, campings marcam uma vida em movimento, uma vida sobre rodas da Volkswagen, com direito a brigas, encontros e, nunca é demais repetir, casamentos. 

O cantor Belchior, autor da música Como nossos pais, que embala a propaganda, aparece estampado na camiseta de um jovem, que se diverte com seus pares acendendo vistosos fogos de artifício e fumaça colorida. Eis outro mito da música profanado, não no sentido bíblico certamente, mas no que diz respeito a tudo o que artistas como ele e Elis Regina significaram em termos socioculturais e políticos.

A face altamente caricata de Elis, o exagerado movimento de sua boca, é o que mais incomoda. A novidade tecnológica, em nome de uma estética de gosto duvidoso e de uma implacável lógica publicitária, marcada pela chantagem emocional e pela apropriação do rosto de pessoas e/ou celebridades (inclusive as mortas) causa um mal-estar crescente. O que diriam Elis e Belchior da propaganda da Volkswagen? Iriam permitir o uso deslavado de suas imagens, mensagens, legados, suas concretas e reais contradições, tudo isso agora à serviço da empresa global de veículos? 

Como bem lembrou Theodor Adorno, ao consumir os produtos da Indústria Cultural estamos dizendo SIM ao sistema (que eventualmente, nos oprime), reiterando nosso conformismo e nos submetendo uma vez mais. Note-se que os próprios mitos revividos, Elis e Belchior, não deixaram de ser, em certa medida, vítimas desta mesma indústria, no seu braço musical. Agora restam embalados pela IA que, ao atender a empresa de carros, contraria boa parte de suas posições rebeldes, vanguardistas e inconformadas, numa apropriação discutível das trajetórias de dois ícones que fizeram de sua arte, justamente, um espaço crítico e contraditório ao estado de coisas que aí está posto. Na propaganda road movie da Volkswagen, performando um dueto entre passado e futuro do automóvel, a história e a memória de nossos ídolos – bem como certa ética da representação – se despedem. 


Adriana Kurtz é jornalista e doutora em Comunicação e Informação UFRGS

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