Juremir Machado da Silva

Encontro com Edgar Morin em Montpellier

Change Size Text
Encontro com Edgar Morin em Montpellier Um mestre em forma/Fotos Ana Rodrigues

Sorridente, a passos lentos, mas firmes, apoiado numa pequena bengala metálica, Edgar Morin, aos 102 de idade, surgiu no começo da rua Jean-Jacques Rousseau para um encontro no bistrô “La Coquille”, junto à linda praça “La Canourgue”, considerada a mais bela e romântica de Montpellier, no sul da França, onde o velho mestre mora com sua esposa marroquina Sabbah. Os abraços foram longos e calorosos. Fazia mais de cinco anos que Cláudia e eu não encontrávamos Morin sem a mediação de uma tela. Entregamos-lhe nossos presentes: balas de coco e tijolinhos.

Passou uma senhora e também o abraçou. Instalados numa mesa do restaurante, onde Morin é tratado pelas jovens garçonetes, uma delas apaixonada pelo Brasil, como da casa, pedimos limonada para ele e para mim e uma taça de vinho tinto para Cláudia. Com voz forte e excepcional memória, Edgar Morin passou imediatamente a falar dos assuntos que o mobilizam. Segue uma dieta rigorosa, sem sal e pouco álcool, embora tenha tomado caipirinhas com pouco açúcar numa viagem de férias recente a Portugal, e cuidados para não ter crises renais. A guerra na Ucrânia é o tema que concentra parte das suas energias intelectuais poderosas:

“Vivi três guerras importantes, a de 1939-1945, a da Argélia e da Iugoslávia. Pensava que, na Europa, estávamos livres desse horror. Ódios históricos vieram à tona e tudo recomeçou com a invasão da Ucrânia pela Rússia”, explicou. Em seguida, disse: “É preciso parar essa guerra”.

Os dois imperialismos

Perguntei-lhe então de quem era a culpa pela guerra: “Evidentemente que Vladimir Putin queria recriar a grande Rússia e por isso invadiu a Ucrânia. Mas ele fracassou. Não conseguiu se apoderar do país invadido e ainda levou países da região a entrar na OTAN. Dito isso, é preciso tentar compreender a complexidade dessa guerra para levar à paz”.

Para ele, a Ucrânia não é fascista, mas tem grupos minoritários de extrema direita, entre os quais os integrantes do famoso Batalhão Azov, usado por sua capacidade de combate, seu empenho, não por suas ideias. Morin diz isso e sorri como se explicasse a complexidade das coisas. Na sequência, lembra que o nome da avenida Moscou fora trocado, depois de 2014, em Kiev para Avenida Bandera, passando a homenagear o líder de nacionalista de direita que se opôs ao domínio soviético e massacrou judeus. Por outro lado, destacou o papel dos russos para o desenvolvimento industrial da região de Dombass e da Crimeia.

“A Ucrânia está no meio de uma luta entre dois imperialismos, o russo e o americano”, repetiu. “Os americanos são donos, inclusive, de extensas propriedades em solo ucraniano”. Fiel ao seu olhar complexo, ele mostra a parte de cada um no conflito e clama pela paz. Como fazer? A primeira medida, insiste, é negociar. “Há quem não queira negociar com Putin por ele ser um ditador. Por que então se negociava com Stalin, que foi um ditador muito pior? Por que se negocia com o ditador chinês atual? A China é a maior ditadura mundial. Negociar é fundamental pela paz”.

Entregar Donbass e a Crimeia

Acompanho o seu raciocínio atentamente. Enfim, pergunto se está sugerindo que a Ucrânia perca territórios para chegar à paz. A resposta é taxativa: “Sim, Donbass e a Crimeia”. Fico à espera de um complemento. Ele prossegue: “São territórios de maioria russa. O importante é garantir que, entregues esses territórios, não haverá perseguições aos ucranianos residentes neles”. Pergunto sobre a repercussão dessa sua posição na França. Ele ri como quem diz “estão loucos”: “Dizem que sou pró-Putin”.

Morin reafirma que seu objetivo é a paz. Explica que em situações extremas algo preciso ser feito que, em geral, não consta nos manuais. Pergunto se acredita na possibilidade imediata de uma solução. Balança negativamente a cabeça. “Os ódios e os interesses conspiram contra a paz”, diz. Então, suavemente muda de assunto. Fala da vida em Montpellier, do lado humano, da tranquilidade e da luminosidade do sul.

Leituras e projetos

Passamos a falar de livros. Ele está encantado com o “Carrasco de Gaudí”, de Aro Sáinz de la Maza. Fica por uns minutos com ar enlevado: “Sempre gostei de romances policiais”, conta. E assim fala da sua rotina: lê muito, passeia, passa horas diante do computador, tuíta, conversa com amigos. Está proibido pelos médicos de andar de avião. Tem dúvidas se realmente lhe faria mal um voo. Volta aos livros e diz que vai começar a ler “Victory City”, de Salman Rushdie. Escreveu com a esposa um livro sobre o que os une sendo tão diferentes: um judeu europeu e uma árabe muçulmana; um homem centenário e uma mulher bem mais jovem; experiências de vida diversas e trajetórias singulares. O que os liga? O amor.

De repente, estamos falando a crise da esquerda francesa. O Partido Socialista está em franca decadência. Morin prega um recomeço, zerar tudo, construir uma nova esquerda. Pergunta-lhe o que acha do presidente Macron. Responde cristalinamente: “O presidente dos ricos”. Cito o nome do opositor de esquerda mais em voga na França, Jean-Luc Mélenchon: “Um bom orador que não consegue, contudo, empolgar”. Pensa um pouco e diz: “Gosto de François Ruffin”, jornalista eleito deputado pela segunda vez.

A crise da esquerda francesa leva ao balanço do marxismo: “Marx acertou na previsão de que haveria uma expansão global do capitalismo. Isso está acontecendo agora. Mas a sua visão do homem e da história era estreita demais, datada. Nela tudo era luta de classes e economia. Havia pouco espaço para o simbolismo e para a singularidade”.

Chegamos a Lula, à sua sinuosa trajetória e ao seu terceiro mandato. Edgar Morin diz que acompanha o noticiário sobre o Brasil. Critica a mídia por oferecer tão pouco sobre a América Latina. Sorri com seu ar maroto: “Parece que ele anda abrindo muito o leque das alianças”. Ri novamente: “É muito importante que ele cuide da Amazônia”. Pergunto se algum dia encontrou o presidente brasileiro: “Nunca”. Fica implícito em seguida que não se negaria a uma conversa. Cláudia brinca: “Se o encontrar, dê-lhe alguns conselhos”. Morin relativiza: “Sugestões”.

Assim ficamos falando, relembrando, aprendendo. Morin tem um projeto: ir ao Brasil de navio. Diz isso e sonha: “Marselha, Lisboa, Recife, Salvador…” Pensa em talvez voltar a morar em Parins, onde tem um pequeno apartamento na rua do Cherche-Midi. Presenteia-nos com um exemplar de seu livro “Lições de um século de vida”, que autografa na hora. Pede que eu lhe envie meu ensaio “Escola da complexidade/escola da diversidade”, do qual lhe falei e que sairá em novembro.

     

Ao nos despedirmos, Edgar Morin nos diz: “Continuemos”.

E com vigor juvenil: “Parabéns mais uma vez pelo Doutorado Honoris Causa. Merecido”.

*

Como não estava em Montpellier na data em que recebi o título de Doutor Honoris Causa, Edgar Morin enviou aos organizadores esta mensagem:

“Lamento muito não estar presente à solenidade de Doutor honoris Causa concedido pela Universidade Paul Valéry a Juremir Machado; aprecio sua magnífica atividade educativa na Universidade em Porto Alegre, li seus importantes textos nos quais integrou de modo original o trabalho de pensadores franceses, inclusive o meu. Juremir é um grande elo entre a cultura brasileira e a cultura francesa. Eu o parabenizo de todo o coração.”

RELACIONADAS

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.