Juremir Machado da Silva

Brasília, uma aberração incandescente

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Brasília, uma aberração incandescente

Eu sempre quis entender Brasília. Toda vez que vou lá, como agora, recomeço meu exercício de interpretação. Assim como existem livros de escritores para escritores, concluo que existem cidades de urbanistas e arquitetos para urbanistas e arquitetos. Brasília é uma aberração capaz de atender exclusivamente ao delírio dos seus criadores. Não é humana. Falta-lhe preenchimento. Vai-se de um ponto a outro sem encontrar nada no meio. Um sanduíche sem recheio. De certo modo, o visitante faz sempre a mesma pergunta para si e para outros:
– Onde está a cidade?

Por cidade costuma-se entender aquele núcleo de prédios justapostos, com muita gente em ruas com muitas esquinas, todo tipo de estabelecimento com portas para calçadas e proximidade. Em Brasília, rigorosamente falando, não há calçadas nem esquina. Bonita do alto, construída para ser admirada de avião, no chão mescla luxo e certo ar de eterno acampamento. Não passa, no fundo, de um croquis. Belas formas, bonitas linhas, sensação permanente de vazio. Algo falhou. Uma cidade dividida por setores contraria a lógica humana da conjunção. O modernismo foi uma utopia de funcionalidade com vigorosa tendência para a distopia. O modernismo brasileiro tem o agravante de ser atípico: modernismo barroco. Curvas a serviço do funcionalismo extremado. Visão linear racionalista com formas curvilíneas.

Brasília só pode distorcer o poder. Nela tudo remete ao inverossímil. A sensação mais forte é sempre a de que tem algo fora do lugar, a começar pelo próprio lugar. A cidade está fora de si, fora de si mesma, como um trajeto sem presença intermediária, percurso infinito, prevalência do deslocamento, soberania do automóvel, privação absoluta do pedestre, cenário no lugar do ambiente, mapa em vez de território, vazio como horizonte, impossibilidade da revelação.

Há cidades com muitos centros. Brasília, centro do poder, não tem centro geográfico de convivência, aquele espaço original ou originário para onde confluem as pessoas quando já não querem praticar seus papéis engessados nem atingir uma meta qualquer. Walter Benjamin não se encontraria em Brasília, cidade sem lugar para o flâneur, salvo para um passante veloz ou sem foco. Não há passagem. Somente artérias. Não há galerias. Apenas shopping. Metafórica e literalmente falando. Talvez o problema seja que em Brasília tudo é artificial: do lago às reputações. Não seria absurdo dizer que o melhor de Brasília são seus exteriores, ainda que tudo pareça voltado para dentro, numa indiferença radical de cada prédio em relação aos demais. Ilusão.

Projetada para ser um projeto, Brasília esgota-se no seu plano rígido, audacioso e arrogante, pilotado por uma miragem, imagem em trompe-l’oeil com ligeiro deslocamento do eixo. Pode-se morrer longe do setor das farmácias ou viver perto demais do setor do poder sem jamais roçá-lo com a ponta dos dedos. O cerrado produz, além de tudo, uma imagem trêmula, como se as linhas de luz se acavalassem vez ou outra gerando um estremecimento brilhoso, irisado, como acontece em desertos em certos momentos dos dias, quando a luz se esfarela.

O que fui fazer em Brasília?

Fui na Frente.


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