Juremir Machado da Silva

Cancelamentos e nova ordem criativa

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Cancelamentos e nova ordem criativa Foto: Michael Dziedzic/Unsplash

I

Entra o diretor do Departamento da Boa Consciência. O Chefe está sentado atrás de um laptop com um celular na mão direita anelada.

– Já foi cancelado, chefe.

– Não podia ficar mais nenhum minuto no ar. Para isso existe o Departamento da Boa Consciência, que, como o nome diz, tem o seu dever moral, imperativo categórico de nossa revolução dos costumes.

– Ele vinha pisando na bola há tempos, chefe.

– Defender a minissaia passou de todos os limites.

– Sim, em 1968, era uma coisa. Em 2029, bem outra.

– Coisificação descarada do corpo feminino.

– Sim, chefe. E o que foi aquela defesa da liberdade de expressão!

– Liberalismo puro, anacrônico, perigoso. O algoritmo pegou logo.

– Ainda tem gente que fala em censura da nossa parte, chefe.

– O Departamento de Linguagem Correta está em cima disso.

– Alguns ainda conseguem postar na Internet Profunda.

– Sim, e tem quem fale em censura. Censura é um conceito burguês, que coloca o indivíduo acima da sociedade. O que a gente faz é pelo bem de todos. Eliminamos palavras inadequadas, purificamos a paisagem social.

– Falando nisso, chefe, um grupo está defendendo o direito de usar clarear, sabe, no sentido de esclarecer as coisas. Que fazemos?

– Cancela todos, Vil. É racismo. E nunca mais usa esclarecer.

– Perdão, chefe, é um resquício da minha formação incorreta.

– Pode sair.

*

      Entra uma mulher com a saia abaixo do joelho. O chefe ajeita os óculos procurando não olhar para a subordinada.

– A direita atacou de novo, chefe.

– O que foi agora, senhora Mill?

– Estão cancelando quem fala vermelho na internet.

– Mas isso é censura.

– Foi o que eu pensei, chefe.

– Que direito eles têm de fazer cancelamentos.

– Lançaram um índex de palavras banidas.

– Proibiram comunismo?

– Sim, chefe, salvo como insulto.

– A senhora tem minissaia em casa?

– Que pergunta é essa, chefe?

– Não é uma pergunta inadequada, me entenda bem, mas só uma preocupação com a sua segurança, dados os bons serviços morais que nos tem prestado.

– Como assim?

– Haverá uma blitz. Quem tiver minissaia receberá cancelamento na hora.

– Mas, se me permite, chefe, com todo o respeito que lhe devo, se a escolha é da mulher, que usa minissaia por vontade própria, salvo se for obrigada pelo maride, ainda se trata de coisificação?

– É pior, muito pior, autocoisificação, a coisificação introjetada na alma como desejo perverso de autoexposição. Crime sem atenuantes.

– Obrigada, chefe, posso me retirar? Tenho médico agora.

*

      Entra um homem baixo e robusto. Usa lentes muito grossas. Veste um terno marrom de uma tristeza explícita. Carrega uma pasta preta:

– Temos vários processos para analisar, chefe.

– Sim, mas antes temos alguns cancelamentos urgentes.

– De quem?

– Do Vil e da senhora Mill, que saíram daqui agora.

– O que fizeram, chefe?

– O Vil falou esclarecer na minha cara.

– Nossa! Com todas as letras?

– Todinhas. E a senhora Mill tem minissaia em casa. Joguei a isca e ela caiu sem dificuldade. Já mandei uma equipe segui-la. Ela deve estar correndo para se livrar da prova do crime. Sempre desconfiei dela.

– Emitirei os certificados, chefe. Temos outro problema importante: falta de funcionários na fábrica de macarrão sem trigo.

– Greve não pode ser? Seriam cancelados.

– Na verdade, chefe, foram todos cancelados. Um deles estava ouvindo uma música de antigamente. Os outros ouviram e começaram a cantar.

– O que dizia?

– Marina, morena, não pinte esse rosto que é só meu…

– Abominável.

– Em outra fábrica, chefe, dançavam funk.

– Não acredito?

– Alegaram que é expressão da cultura de periferia.

– Ora, isso foi no passado. Na última reunião do Partido ficou decidido que não passa de coisificação espúria do corpo feminino.

– Uma mulher escondia um cartaz com uma foto da Anitta?

– Ainda existem fotos da Anitta? Ela foi cancelada em 2025.

– Sim, chefe.

– Onde está esse pessoal todo?

– Em casas de reeducação ouvindo sertanejo exaltação.

– Muito bom. Ainda bem que temos o cancelamento à nossa disposição.

– Sim, chefe, eles preferiram um ano numa solitária a ficar fora das redes sociais. O sofrimento é grande. Já temos tentativas de suicídio.

– Quem se matar terá sepultamento cancelado dentro dos nossos muros.

– Tem outra coisa, chefe: um estudante com um livro de Mill.

– Daquela cachorra, com o perdão dessa expressão incorreta?

– Não, chefe, do John Stuart Mill.

– Queimem o livro. E cancelem o infrator para sempre.

– É um adolescente, chefe.

– Servirá de exemplo. Lembre-se de que nada fazemos sem o aval das redes. Não cancelamos ninguém antes de ter havido o cancelamento nas redes por um complexo número proporcional determinado pelo algoritmo.

– É criterioso e objetivo, né, chefe?

– É imparcial, objetivo, neutro e isento. Entendeu?

– Sim. Vou tratar disso, chefe.

*

Entra o diretor do Departamento de Combate ao Preconceito Estrutural. É um rapaz com gel no cabelo e um leve sorriso:

– Nossa conversa será rápida, José.

– Algum problema, chefe?

– Sim. Quem criou esse nome, esse Departamento de Combate ao Preconceito Estrutural?

– Foi uma decisão coletiva do departamento, chefe.

– Não fui consultado.

– O senhor havia dado autonomia ao departamento, chefe.

– Esse nome é racista.

– Como assim, chefe? É literal, descritivo, neutro, se me entende?

– A direita vai ironizar esse nome.

– A direita foi cancelada, chefe.

– Falo da direita autorizada, como o MDB.

– Sério, chefe?

– Está cancelado. Pode sair.

II

Entra o diretor do Departamento de Moral e Cívica. O ministro está sentado à frente de uma grande bandeira brasileira. Um livro de Plínio Salgado dorme junto a um pequeno busto de Donald Trump.

– Temos um novo plano de cancelamento, chefe.

– Qual é o público alvo?

– A esquerda, chefe.

– Qual o foco?

– Não aceitam que se defenda em tese a existência de um partido nazista.

– Mas isso é censura.

– Dizem que não, que é combate ao fascismo.

– Sabe o que mais me enfurece?

– Já vou saber.

– Quem cancela os canceladores dizendo que é contra cancelamentos.

– São os piores, sem dúvida.

– Hipócritas, reacionários e cínicos.

– Precisam ser cancelados impiedosamente.

III

Entra o diretor do departamento de revisão comportamental. O chefe continua sentado atrás do seu laptop.

– Dê o relatório.

– Pois é, chefe, pedem o seu cancelamento.

– O meu?

– Sim, chefe, o senhor foi denunciado por conduta duvidosa, vulgo assédio, por fazer uma pergunta inadequada a uma mulher.

– Que me denunciou?

– A senhora Mill.

– Aquela… aquela… senhora?

– Sim. O senhor teria perguntado se ela tinha minissaia…

– Perguntei, mas posso explicar…

– Terá de fazer isso ao presidente.

IV

Entra o presidente. O chefe dá um salto. Perfila-se.

– À vontade, ministro.

– Não o esperava.

­– Desci um andar para espichar as pernas.

– Em que posso servir?

– Já examinei o seu caso.

– Não era preciso, presidente. Já me autocancelei.

– Autocancelou?

– Sim. Preciso dar o exemplo.

– Por causa da denúncia da senhora Mill?

– Não, por outra razão, presidente.

– Desembuche.

– Protegi uma pessoa de ser cancelada.

– Quem?

– Minha mãe.

*

Moral da história: é fácil rir daquilo que machuca os outros. Humor inteligente é outra coisa, cada vez mais rara e necessária.

Por uma nova ordem criativa.

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