Cancelamentos e nova ordem criativa
I
Entra o diretor do Departamento da Boa Consciência. O Chefe está sentado atrás de um laptop com um celular na mão direita anelada.
– Já foi cancelado, chefe.
– Não podia ficar mais nenhum minuto no ar. Para isso existe o Departamento da Boa Consciência, que, como o nome diz, tem o seu dever moral, imperativo categórico de nossa revolução dos costumes.
– Ele vinha pisando na bola há tempos, chefe.
– Defender a minissaia passou de todos os limites.
– Sim, em 1968, era uma coisa. Em 2029, bem outra.
– Coisificação descarada do corpo feminino.
– Sim, chefe. E o que foi aquela defesa da liberdade de expressão!
– Liberalismo puro, anacrônico, perigoso. O algoritmo pegou logo.
– Ainda tem gente que fala em censura da nossa parte, chefe.
– O Departamento de Linguagem Correta está em cima disso.
– Alguns ainda conseguem postar na Internet Profunda.
– Sim, e tem quem fale em censura. Censura é um conceito burguês, que coloca o indivíduo acima da sociedade. O que a gente faz é pelo bem de todos. Eliminamos palavras inadequadas, purificamos a paisagem social.
– Falando nisso, chefe, um grupo está defendendo o direito de usar clarear, sabe, no sentido de esclarecer as coisas. Que fazemos?
– Cancela todos, Vil. É racismo. E nunca mais usa esclarecer.
– Perdão, chefe, é um resquício da minha formação incorreta.
– Pode sair.
*
Entra uma mulher com a saia abaixo do joelho. O chefe ajeita os óculos procurando não olhar para a subordinada.
– A direita atacou de novo, chefe.
– O que foi agora, senhora Mill?
– Estão cancelando quem fala vermelho na internet.
– Mas isso é censura.
– Foi o que eu pensei, chefe.
– Que direito eles têm de fazer cancelamentos.
– Lançaram um índex de palavras banidas.
– Proibiram comunismo?
– Sim, chefe, salvo como insulto.
– A senhora tem minissaia em casa?
– Que pergunta é essa, chefe?
– Não é uma pergunta inadequada, me entenda bem, mas só uma preocupação com a sua segurança, dados os bons serviços morais que nos tem prestado.
– Como assim?
– Haverá uma blitz. Quem tiver minissaia receberá cancelamento na hora.
– Mas, se me permite, chefe, com todo o respeito que lhe devo, se a escolha é da mulher, que usa minissaia por vontade própria, salvo se for obrigada pelo maride, ainda se trata de coisificação?
– É pior, muito pior, autocoisificação, a coisificação introjetada na alma como desejo perverso de autoexposição. Crime sem atenuantes.
– Obrigada, chefe, posso me retirar? Tenho médico agora.
*
Entra um homem baixo e robusto. Usa lentes muito grossas. Veste um terno marrom de uma tristeza explícita. Carrega uma pasta preta:
– Temos vários processos para analisar, chefe.
– Sim, mas antes temos alguns cancelamentos urgentes.
– De quem?
– Do Vil e da senhora Mill, que saíram daqui agora.
– O que fizeram, chefe?
– O Vil falou esclarecer na minha cara.
– Nossa! Com todas as letras?
– Todinhas. E a senhora Mill tem minissaia em casa. Joguei a isca e ela caiu sem dificuldade. Já mandei uma equipe segui-la. Ela deve estar correndo para se livrar da prova do crime. Sempre desconfiei dela.
– Emitirei os certificados, chefe. Temos outro problema importante: falta de funcionários na fábrica de macarrão sem trigo.
– Greve não pode ser? Seriam cancelados.
– Na verdade, chefe, foram todos cancelados. Um deles estava ouvindo uma música de antigamente. Os outros ouviram e começaram a cantar.
– O que dizia?
– Marina, morena, não pinte esse rosto que é só meu…
– Abominável.
– Em outra fábrica, chefe, dançavam funk.
– Não acredito?
– Alegaram que é expressão da cultura de periferia.
– Ora, isso foi no passado. Na última reunião do Partido ficou decidido que não passa de coisificação espúria do corpo feminino.
– Uma mulher escondia um cartaz com uma foto da Anitta?
– Ainda existem fotos da Anitta? Ela foi cancelada em 2025.
– Sim, chefe.
– Onde está esse pessoal todo?
– Em casas de reeducação ouvindo sertanejo exaltação.
– Muito bom. Ainda bem que temos o cancelamento à nossa disposição.
– Sim, chefe, eles preferiram um ano numa solitária a ficar fora das redes sociais. O sofrimento é grande. Já temos tentativas de suicídio.
– Quem se matar terá sepultamento cancelado dentro dos nossos muros.
– Tem outra coisa, chefe: um estudante com um livro de Mill.
– Daquela cachorra, com o perdão dessa expressão incorreta?
– Não, chefe, do John Stuart Mill.
– Queimem o livro. E cancelem o infrator para sempre.
– É um adolescente, chefe.
– Servirá de exemplo. Lembre-se de que nada fazemos sem o aval das redes. Não cancelamos ninguém antes de ter havido o cancelamento nas redes por um complexo número proporcional determinado pelo algoritmo.
– É criterioso e objetivo, né, chefe?
– É imparcial, objetivo, neutro e isento. Entendeu?
– Sim. Vou tratar disso, chefe.
*
Entra o diretor do Departamento de Combate ao Preconceito Estrutural. É um rapaz com gel no cabelo e um leve sorriso:
– Nossa conversa será rápida, José.
– Algum problema, chefe?
– Sim. Quem criou esse nome, esse Departamento de Combate ao Preconceito Estrutural?
– Foi uma decisão coletiva do departamento, chefe.
– Não fui consultado.
– O senhor havia dado autonomia ao departamento, chefe.
– Esse nome é racista.
– Como assim, chefe? É literal, descritivo, neutro, se me entende?
– A direita vai ironizar esse nome.
– A direita foi cancelada, chefe.
– Falo da direita autorizada, como o MDB.
– Sério, chefe?
– Está cancelado. Pode sair.
II
Entra o diretor do Departamento de Moral e Cívica. O ministro está sentado à frente de uma grande bandeira brasileira. Um livro de Plínio Salgado dorme junto a um pequeno busto de Donald Trump.
– Temos um novo plano de cancelamento, chefe.
– Qual é o público alvo?
– A esquerda, chefe.
– Qual o foco?
– Não aceitam que se defenda em tese a existência de um partido nazista.
– Mas isso é censura.
– Dizem que não, que é combate ao fascismo.
– Sabe o que mais me enfurece?
– Já vou saber.
– Quem cancela os canceladores dizendo que é contra cancelamentos.
– São os piores, sem dúvida.
– Hipócritas, reacionários e cínicos.
– Precisam ser cancelados impiedosamente.
III
Entra o diretor do departamento de revisão comportamental. O chefe continua sentado atrás do seu laptop.
– Dê o relatório.
– Pois é, chefe, pedem o seu cancelamento.
– O meu?
– Sim, chefe, o senhor foi denunciado por conduta duvidosa, vulgo assédio, por fazer uma pergunta inadequada a uma mulher.
– Que me denunciou?
– A senhora Mill.
– Aquela… aquela… senhora?
– Sim. O senhor teria perguntado se ela tinha minissaia…
– Perguntei, mas posso explicar…
– Terá de fazer isso ao presidente.
IV
Entra o presidente. O chefe dá um salto. Perfila-se.
– À vontade, ministro.
– Não o esperava.
– Desci um andar para espichar as pernas.
– Em que posso servir?
– Já examinei o seu caso.
– Não era preciso, presidente. Já me autocancelei.
– Autocancelou?
– Sim. Preciso dar o exemplo.
– Por causa da denúncia da senhora Mill?
– Não, por outra razão, presidente.
– Desembuche.
– Protegi uma pessoa de ser cancelada.
– Quem?
– Minha mãe.
*
Moral da história: é fácil rir daquilo que machuca os outros. Humor inteligente é outra coisa, cada vez mais rara e necessária.
Por uma nova ordem criativa.