Juremir Machado da Silva

Escola da complexidade

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Escola da complexidade Foto: Tim Johnson/Unsplash

Leitor da obra de Edgar Morin, para quem complexo é uma tessitura de vários fios entrelaçados, penso na escola do amanhã, esse futuro que já começou, e não deixo de enxergar transfigurações. Alguns elementos parecem incontornáveis: iniciação; pedagogia da imagem; compartilhamento; razão sensível; ética do diálogo; lúdico.

Uma passagem da educação à iniciação é algo muito pensado por outro sociólogo francês, o maravilhosamente destoante Michel Maffesoli. Para ele o tempo da transmissão passou com a vertigem moderna da racionalização total da vida. Aquele que aprende por iniciação faz um percurso visceral em companhia de outros educandos e de um “mestre” provocador de situações envolventes e transformadoras. Maffesoli defende que a educação tradicional é dominada pelo sentido da hierarquia que elitiza. Parafraseando o seu mestre Gilberto Durand, autor de “As estruturas antropológicas do imaginário”, a educação seguiria um dominante postural vertical. Já a iniciação atenderia a uma dominante postural horizontal. A educação pertenceria ao regime diurno da imagem, cujo símbolo é a espada, espaço falocrático do dedo em riste. Pode-se associar livremente a iniciação ao regime noturno da imagem, marcado pela copa, taça, recipientes onde se bebe o vinho da existência. Aquele que sabe algo que o outro ainda não sabe, não se põe como autoridade no sentido hierárquico da palavra. A construção dessa horizontalidade, sem demagogia, é um processo dialógico.

A Escola da Complexidade não pode ser um sistema de hierarquia social pela educação nem um mecanismo de reprodução das desigualdades e privilégios históricos. Durante séculos a palavra escrita foi o principal elemento da formação. Ela hierarquizava as sociedades entre os que decifravam um alfabeto e os que permaneciam na escuridão do analfabetismo. O livro era, ao mesmo tempo, armazenamento e transporte de informações. Neste mundo hipermoderno dominado pelas mutações tecnológicas, aceleradas imagens e sons podem ser facilmente armazenados e transportados. Uma pedagogia da imagem ganha dimensões inusitadas. Cada um é alfabetizado por imagens. A imagem pode ser interpretada com mais sentidos do que as letras. Ela jamais se nega por completo a um intérprete qualquer. Dela sempre emana uma luz.

Compartilhamento significa que nessa horizontalidade da iniciação as trocas serão o vetor fundamental, evocando a “inteligência coletiva” teorizada por Pierre Lévy e os coletivos inteligentes por acúmulo de massa crítica. Em consequência, as separações disciplinares tenderão a ser quebradas, prevalecendo a transdisciplinaridade, que, como sustenta Edgar Morin, é mais do que a soma das partes, não se reduzindo tampouco a uma aproximação de disciplinas com algum interesse comum. O conhecimento transdisciplinar é uma potente fusão produtora de novas sínteses e compreensões.

Essa Escola da Complexidade não se limitará a tentar explicar os acontecimentos e fenômenos, mas cuidará também de compreender o vivido. Morin destaca que a explicação remete a procedimentos abstratos, lógico-dedutivos, fundamentais para o entendimento de relações de causalidade. A compreensão, porém, remete ao concreto, ao empático, ao sentido, ao singular, as significações particulares. A Escola da Complexidade, de tendência moriniana, só poderá ser hologramática: a parte está no todo, que está na parte. A célula está no organismo, que está na célula. Articular a parte e o todo é o grande desafio daquele que quer se iniciar nos mistérios do mundo.

No compartilhamento transdisciplinar aquele que dá uma informação não a perde, mas, ao contrário, ganha com a inclusão num coletivo pensante horizontal enriquecedor. Nesse espaço lúdico de conhecimento só o melhor argumento, aquele que convence pela sua força interna, conquista corações e mentes. Ceder diante de uma argumentação poderosa não se apresenta como uma derrota. Tem, na verdade, o valor de uma vitória, de um avanço, a vitória sobre o desconhecimento, avanço em relação à superação de um obstáculo, salto para a frente num jogo de muitas causas e dificuldades. O compartilhamento lúdico insemina. Falar em lúdico, contudo, não pode ser traduzido como uma “gameficação” infantilizadora e simplista. Jogar quer dizer explorar as vertentes agonísticas do espírito humano, com sua dimensão erótica, que não se resume ao sexual, havendo gozo no intelecto iluminador.

Tal perspectiva demanda uma razão sensível, aquela que não omite outras formas de saber, não nega a intuição, não renega os saberes da experiência prática ou mitológica, abre-se às poéticas do vivido e considera as diferentes epistemologias produzidas por realidades históricas diversas ou milenares. Conhecer é entrar no mundo de corpo, alma e mente. Essa imersão para ser integral exige uma ética do diálogo, aquela que se fundamenta num encontro de diferentes, numa conciliação de inconciliáveis, num “equilíbrio de antagonismos”, conforme a bela expressão de Gilberto Freyre, num jogo aberto, no respeito aos pilares do conhecimento do outro, esse irredutível aos valores, visões de mundo e métricas do seu interlocutor ocasional.

Se a racionalidade emancipa, o racionalismo oprime. Uma Escola da Complexidade ampara-se na racionalidade e recusa o racionalismo.

Ela precisa ser sensível às múltiplas razões do vivido. O livro e a escrita manterão um lugar de honra nesse universo transfigurado. Afinal, uma tecnologia não precisa necessariamente expulsar outra.

Todas as formas de aprender e saber são boas quando se abrem para a pluralidade dos modos de conhecer e de narrar o que se vive.

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