Juremir Machado da Silva

Gratidão e algo mais

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Gratidão e algo mais Foto: Mor Shani/Unsplash

Então, na manhã que caía coberta de cinza e umidade, ela me olhou e disse como se tivéssemos nos encontrado na tarde anterior:

– Gratidão!

Fiquei por alguns instantes meio confuso. Claro que meio é uma maneira de dizer, dessas que usamos para encobrir o todo de modo a dissimular a nossa confusão absoluta. Quem era ela? Por que me falava em gratidão? Aqui preciso fazer um parêntese: eu me perguntava duas coisas: pelo que ela me agradecia? Por que não dizia “obrigada”?

Ela continuava diante de mim com seu olhar terno, que contrastava certamente com meu olhar perdido. Quando foi que se passou a dizer gratidão em lugar de obrigado? Era o que me passava na mente.

– Gratidão! – ela repetiu.

Era a minha vez de falar. Já era tempo de mostrar algum sinal de civilidade. Eu discutia comigo mesmo se a melhor forma de diminuir o constrangimento e evitar mal-entendidos seria a franqueza brutal:

– Você é a…?

Temi que as reticências não dessem conta do recado. Há pessoas que não decifram três pontinhos, assim como eu não decifro gráficos e aplaudo quem torna redundante a informação gráfica com um texto capaz de penetrar o meu espírito cultivado na linearidade dos livros.

– Como vai?

Essa seria a saída covarde, aquela que não ofenderia a memória da moça, mas poderia ser atropelada por algum detalhe imediato. Decidi que era hora de ser firme, esclarecedor, sem qualquer condescendência:

– Tu não és a…?

Notei que a construção negativa turvou o olhar da elegante senhora. Quando chegamos às reticências ela já estava chocada. Eu podia ler no rosto dela o pasmo diante da minha suposta ingratidão.

– Eu sou a Vilma, irmã do Lauro, teu amigo de colégio.

Eu nunca tive um amigo de colégio chamado Lauro. Conheci duas Vilma, uma negra e uma loira. A moça diante de mim era ruiva. A minha mente rodava freneticamente tentando, feito um Iphone 5S, baixar um programa para Iphone 13. A bolinha ficava girando a eternidade de um segundo. Eu me perguntava nervosamente: quem é ela e quem é o Lauro? Mais: quando foi mesmo que passaram a usar gratidão desse jeito?

Para mim, gratidão, em lugar de obrigado, é como dizer amar em vez de eu te amo. Ou paixão em lugar de estou apaixonado. Sei lá. Tenho dessas implicâncias que muito me custam em capital social. Sei que é muito mais fácil fazer como os outros e não encher o saco.

– Você não é o Raul?

– Raul, eu? Não, não sou eu.

Tive uma vontade danada de perguntar: tenho cara de Raul? Vilma corou. Eu tratei de dizer-lhe que podia acontecer com qualquer um. O Uber dela chegou junto com o meu. Conferimos as placas e embarcamos. Pensei com o meu celular que é melhor sempre ficar de cabeça baixa. O motorista puxou conversa comigo. Eu não havia marcado a opção sem papo no aplicativo. Ficou perplexo quando lhe perguntei a seco:

– Quando foi que os narradores de futebol começaram a usar acréscimos em vez de descontos para os minutos a mais numa partida?

Ele não sabia. Ignorava que um dia tivessem usado descontos. Parecia muito mais velho do que eu, mas dizia ignorar o passado. Aquilo me deixou indignado. Ao descer, já mais calmo, eu lhe disse:

– Gratidão.      

E não avaliei a corrida.

*

APCEF-RS no Dia Mundial do Meio Ambiente

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