Juremir Machado da Silva

Machado, cronista das classes ociosas

Change Size Text
Machado, cronista das classes ociosas

Li a obra de Machado de Assis. Localizei tudo o que ele falava sobre jornalismo, arte, trabalho e escravidão. Selecionei fragmentos e fiz comentários a eles. Produzi o livro Machado de Assis, o cronista das classes ociosas, por enquanto em e-book. Saí dessa empreitada convencido mais do que nunca da genialidade de Machado de Assis e do fato de que podia ser um crítico feroz em arte, defensor ferrenho da política brasileira nos conflitos do império com seus vizinhos sul-americanos, apaixonado por jornalismo a ponto de considerar que os jornais abalaram mais os privilégios das elites do que qualquer outra coisa e quase silencioso em matéria de crítica à escravidão.

Muito se discute se Machado de Assis era ou não abolicionista. Os que pretendem transformá-lo num mito inquestionável garantem que sim. Eu acabo de ler as obras dele de cabo a rabo. Ninguém foi tão genial quanto ele em literatura no Brasil até hoje. Machado de Assis escreveu romances, poesia, teatro contos e crônicas, com pseudônimos ou não. Em 11 de maio de 1888, dois dias antes de aprovada a Lei Áurea, publicou uma crônica em Bons Dias! Era o espaço que tinha na época, na Gazeta de Notícias. Chama a atenção que esse texto seja tão pouco citado. O cronista fala que “toda a gente contempla a procissão na rua, as bandas e bandeiras, o alvoroço, o tumulto, e aplaude ou censura, segundo é abolicionista ou outra coisa”. Mas, segundo ele, “ninguém arrancou aos fatos uma significação, e, depois, uma opinião”. A afirmação seguinte impressiona: “Eu, pela minha parte, não tinha parecer. Não era por indiferença; é que me custava a achar uma opinião”. Segue uma ironia sobre outros terem muitas opiniões.

“Alguém me disse que isto vinha de que certas pessoas tinham duas e três, e que naturalmente esta injusta acumulação trazia a miséria de muitos; pelo que era preciso fazer uma grande revolução econômica, etc. Compreendi que era um socialista que me falava, e mandei-o à fava”. Para Machado de Assis era preciso atentar para a “diferença que há entre um homem de olho aberto, profundo, sagaz, próprio para remexer o mais íntimo das consciências (eu em suma), e o resto da população”. Festejavam sem terem consciência de tudo.

Machado de Assis fala das alforrias, “que vêm cair como estrelas no meio da discussão da lei da abolição”, e solta estas frases para a posteridade: “Lá que eu gosto da liberdade, é certo; mas o princípio da propriedade não é menos legítimo. Qual deles escolheria? Vivia assim, como uma peteca (salvo seja), entre as duas opiniões, até que a sagacidade e profundeza de espírito com que Deus quis compensar a minha humildade, me indicou a opinião racional e os seus fundamentos”. Dois dias antes da abolição no Brasil o cronista oscilava entre o gosto pela liberdade e a legitimidade do princípio da propriedade!

Depois ele fala de escravos acoitados em Ouro Preto: “Estavam ali muitos escravos fugidos. Escravos, isto é, indivíduos que, pela legislação em vigor, eram obrigados a servir a uma pessoa; e fugidos, isto é, que se haviam subtraído ao poder do senhor, contra as disposições legais. Esses escravos fugidos não tinham ocupação; lá veio, porém, um dia em que acharam salário, e parece que bom salário”. A descrição desapaixonada, em momento tão importante, choca. A conclusão sobre os escravos em Ouro Preto também: “Quem os contratou? Quem é que foi a Ouro Preto contratar com esses escravos fugidos aos fazendeiros A, B, C? Foram os fazendeiros D, E, F. Estes é que saíram a contratar com aqueles escravos de outros colegas, e os levaram consigo para as suas roças”. O cronista joga a toalha. Acha muito:

“Não quis saber mais nada; desde que os interessados rompiam assim a solidariedade do direito comum, é que a questão passava a ser de simples luta pela vida, e eu, em todas as lutas, estou sempre do lado do vencedor”. O texto era assinado com pseudônimo. A genialidade do homem por trás do fake, porém, não diminui. Ninguém é um só. A questão, quando se trata de Machado de Assis e da escravidão, é esta: qual foi a sua estratégia? O que o levou a ficar na retranca?

Claro, alguém poderá dizer que era ironia.

RELACIONADAS

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.