Juremir Machado da Silva

Projeto de vida

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Projeto de vida

Enquanto Jair Bolsonaro se agita e desespera, um pouco de repouso. Durante muito tempo eu só tive um projeto na vida: ser cronista. Eu me via escrevendo todos os dias por décadas, até, muito velhinho, não ter mais forças para apertar as teclas do computador. Na verdade, esse sonho eu tinha quando era preciso quase socar as teclas de uma máquina de escrever. Os computadores só me tornaram o sonho mais fácil. Então comecei a escrever crônicas e nunca mais parei. A primeira chamava-se “Teresa” e nunca soube de onde viera a inspiração. Nunca amei uma Teresa. Creio que não conheci mais do que duas. O problema de querer ser cronista é que me faltavam explicações:

– Cronista? Pra que serve isso?

Essa pergunta eu ouvia com tanta frequência que já pressentia a hora de cair fora de modo a evitar mais uma saia justa. Mais difícil havia sido quando me decidi a estudar jornalismo. Não tinha resposta para a pergunta fatídica, impiedosa, incontornável, matadora mesmo:

– Isso dá dinheiro?

Não sabia. Desconhecia os ganhos do Rubem Braga e do Fernando Sabino. Imaginava que fossem ricos, mas isso não garantia que eu também pudesse ganhar tanto quanto eles. Era, porém, uma esperança. Outro problema é que, ao contrário de jornalista, cronista não tem diploma. Como eu saberia se já era, de fato, cronista na vida? Uma vez, perguntei a Moacyr Scliar se eu já podia me considerar escritor. Com seu humor habitual e seus olhos piscantes, Moacyr me respondeu:

– Quer que eu te mande um certificado?

Eu me tornei cronista quando a crônica declinava. Ainda assim, no meu caso, era melhor do que insistir numa carreira de médico, de centroavante ou de cantor. Tenho medo de sangue, fiz muito gols no sábado à tarde, sempre, no entanto, sob a desconfiança dos parceiros, e sou a pessoa mais desafinada que conheço, depois de alguns cantores sertanejos e de alguns roqueiros. Na era da crise da crônica – sempre tive uma queda por fórmulas angustiadas –, havia sempre muitos desvios. Um dia era preciso escrever um artigo sobre a inflação galopante, no outro, um pequeno ensaio sobre a literatura de autoajuda, um comentário sobre a riqueza da Rihanna, algo assim, todos esses textos urgentes que precisamos fazer para salvar a ararinha azul, a Redenção da sanha privatista do Sebastião Melo, etc. Na época do meu sonho havia uma discussão sobre usar ou não etc. Escrevi uma boa crônica, que não encontro, sobre o etc. Um leitor utilitarista tratou de considerá-la inútil para o progresso da humanidade.

Fui obrigado, nessa ocasião, a pensar sobre o meu papel no progresso da humanidade. Se dependesse de mim, o prendedor de roupa, dada a sua complexidade, não teria sido inventando, muito menos a paralaxe da observação. Que troço é esse? Em outros tempos, claro, eu explicaria. Agora, recomendo o Google. Faz alguns dias, diante de um problema pontual, sugeri o Google ou Michel Foucault. Afinal, o que me fez querer ser cronista quando todos me sugeriam estudar direito, nos dois sentidos da palavra, por óbvio? Acho que foi a Fátima. Sim, foi.

Que Fátima? A primeira menina que levei ao cinema. Era no Internacional, num domingo de manhã. Como não tive coragem de pegar da mão dela, pensei, na saída, em atravessar a linha divisória e me refugiar no Uruguai. Só não fui porque tinha jogo do Internacional na tarde daquele dia e ia passar na televisão. Fátima, porém, não me perdoou. Ainda ouço seus lábios rosados dizendo altivamente:

– Isso dava uma crônica.

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