Rouanet era um filósofo, não uma lei
Faleceu Sérgio Paulo Rouanet, aos 88 anos de idade. Ele era membro da Academia Brasileira de Letras. Foi um refinado pensador da crise da modernidade e um crítico da pós-modernidade. Ficou mais conhecido pela lei de incentivo à cultura que leva o seu nome e foi esculhambada por analfabetos que amam armas e odeiam livros, ainda que recebam medalhas da Biblioteca Nacional. Uma vez, encontrei Rouanet sentado junto a um quiosque, no calçadão de Ipanema, no Rio de Janeiro. Aproveitamos para suavemente conversar sobre as nossas diferenças.
Eu o critiquei em meu livro Anjos da perdição: futuro e presente na cultura brasileira (Sulina). Ele era o moderno. Eu, o pós-moderno. Como um D. Quixote eu enfrentei o oponente com estocadas duras:
“Nos anos 80, com a explosão do pós-moderno, surgiu o veredito: a barbárie tomara conta do Ocidente. O Brasil estava contaminado. A juventude, doente. A Verdade e o Bem, soterrados. Começava o trabalho de salvação da modernidade. Um dos mais marcantes livros, em tal perspectiva, foi escrito pelo filósofo e diplomata Sérgio Paulo Rouanet, secretário da Cultura na presidência de Fernando Collor de Mello. A obra, intitulada As Razões do Iluminismo, data de 1987”.
Sérgio Paulo Rouanet via perigo no ar: “A barbárie que denuncia teria vindo da adesão de mentalidades esquerdistas ao novo irracionalismo. Sua origem: a importação de ideias. Vinculação temporal: os anos sessenta, com a chamada geração Woodstock: os roqueiros, hippies e libertários que se voltaram contra o produtivismo, o progressismo e o racionalismo e encabeçaram a radical contestação do utilitarismo ocidental. Influência intelectual de alto nível: Michel Foucault; o Foucault que denunciou a vinculação da razão com o poder. Em uma palavra: a contracultura teria aberto o caminho à implosão do humanismo racional. Pior: os jovens, ignorantes, contestariam a razão em nome do Nada. Os irracionalistas europeus do entre guerras, cultos, teriam lutado contra a razão com Nietzsche e Bergson. A juventude dos anos oitenta, inculta, nem saberia da existência desses senhores”.
Como eram bons esses tempos em que se podia debater ideias sem medo de ser chamado de intelectual e ainda selar a paz com um coco.
Para Rouanet, os novos irracionalistas abrigavam-se “nas subculturas jovens: roqueiros embrutecidos, fetichizadores da prática e inimigos da reflexão”. Hoje, o rock é música de velhinhos de 70 anos. O filósofo indicava três tendências irracionalistas: o antiautoritarismo, o anticolonialismo e o antielitismo. Pano de fundo: a ditadura militar, que alienou as gerações posteriores ao golpe. O antiautoritarismo, expressava-se “na contestação da ditadura e no aparecimento de novos sujeitos sociais: negros, homossexuais, mulheres… O perigo seria a perda da criticidade. Prática pura; ausência de teoria: “Mais cedo ou mais tarde, o movimento inspirado por esse tipo de antiautoritarismo se dará conta de que não é a razão que é castradora, e sim o poder que ele combate, e que ele só poderá vencer quando se reconciliar com a teoria”. A justa reflexão levaria à descoberta do poder emancipacionista da razão. Pensar é mais importante do que agir.
“O anticolonialismo, instrumento da autonomia nacional, resvalaria ao lutar por uma reserva de mercado cultural com o fim de preservar a identidade de um país”. Neste ponto, Rouanet bombardeava a esquerda tradicional e os nacionalistas. O liberal Rouanet, ex-embaixador do Brasil na Dinamarca, era um cosmopolita. Preocupava-se com uma rigorosa definição dos paradigmas culturais superiores. Eu o resumia assim: “O antieletismo, terceiro suporte do novo irracionalismo, é para ele o efeito da desqualificação da cultura erudita. Mecanismo de destruição dos referenciais, enquanto simularia à condenação dos valores aristocráticos, seria o canal privilegiado da introdução ao caos contemporâneo”. Rouanet lembrava nesse ponto intelectuais conservadores como Allan Bloom, Roger Scruton e Alain Finkielkraut, todos entristecidos com a decadência da alta cultura.
Ele se lamentava: “O que para Adorno era um pesadelo, é hoje considerado uma realidade saudável, que só é criticada por alguns intelectuais rabugentos. Existe mesmo um movimento que inclui essa tendência em seu ideário estético: a pós-modernidade”. Queria elevar todos à condição de consumidores da cultura erudita: “O ideal democrático é a universalidade, o que significa criar condições para que todos tenham acesso à língua culta, e não a segregação, que exclui grandes parcelas da população do direito de usar um código mais rico, que lhes permitiria estruturar cognitivamente sua própria prática, com vistas à transformá-la”. O que terá pensado da era da Anitta e Gkay?
Emancipacionista, Sérgio Paulo entendia que a “libertação dos oprimidos” passaria “pelo desenvolvimento integral da sua capacidade cognitiva”. Descarregava as suas armas argumentantivas contra o ecletismo, a identificação do analista com o místico, com o poeta e com os mistérios dionisíacos. Indignava-se com os atalhos tomados por nós. Enquanto espera a luz, o homem “pode impacientar-se e procurar atalhos para a verdade, que dispensam a razão – seitas orientais, experiências místicas, “singularidades inefáveis”. Em vão”.
Rouanet perdeu a guerra, mas não deixou de localizar certeiramente alguns perigos e inimigos: “Os fatos sociais só mudam com outros fatos sociais, e o irracionalismo brasileiro é hoje um fato social. Mas a razão, convertida em força histórica, pode criar um fato social oposto, fazendo recuar a onda irracionalista que ameaça submergir o país”. O mal não estava na pós-modernidade nem no rebaixamento da cultura pelo rock, mas no avanço do obscurantismo, do negacionismo e de novos autoritarismos. Sérgio Paulo Rouanet não podia estar feliz no país de Bolsonaro e das verbas da cultura para armas.
O iluminista apagou-se.