Juremir Machado da Silva

Origem do mundo e Davi cancelados

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Origem do mundo e Davi cancelados "Se Davi incomoda um pai americano, o que dizer de 'A origem do mundo', esplêndido quadro de Gustave Courbet" (Reprodução)

Uma professora nos Estados Unidos foi demitida, sob pressão do pai de um aluno, por ter mostrado imagens de Davi. Que Davi? Ora, o Davi de Michelângelo. Aquele mesmo da maravilhosa escultura em mármore de Carrara que pode ser vista na Galeria da Academia, em Florença. Ou, em cópia, em praça pública. Símbolo da beleza masculina e da Renascença, Davi exibe sua genitália desde 1504. O neopuritanismo de alguns toscos da Flórida, onde a direita Miami brasileira adora morar, considera pornográfica a nudez escultural da célebre obra de arte.

Para Cecilie Hollberg, diretora da Galeria da Academia de Florença, “existe uma grande diferença entre nudez e pornografia”. Ela chamou de “puritanismo inapropriado” a reação do zeloso pai norte-americano. Poderia ter chamado de estupidez e não estaria errada. Se Davi incomoda um pai americano, o que dizer de “A origem do mundo”, esplêndido quadro de Gustave Courbet, exposto no Museu d’Orsay, em Paris. Pintado em 1866, mostra o “ventre lascivo de uma mulher”. Em português cotidiano, exibe uma boceta sem dissimulações. Teria sido uma encomenda do diplomata turco otomano Khalil-Bey. Por que esse medo do nu? No Brasil, esse pai teria de pedir a supressão do carnaval.

Melhor não dar ideia. Algum deputado de extrema direita pode aproveitar para apresentar um projeto de lei. Em 1968, a partir da rebelião juvenil francesa, viveu-se a utopia da liberação total, orgia liberatória depois de séculos de hipocrisia. Era proibido proibir e encher o saco com moralismo barato. Décadas depois, o filósofo Jean Baudrillard perguntaria: “O que fazer depois da orgia?” Jean, que morreu em 2007, já se incomodava com a ascensão do chamado politicamente correto, que, na sua ironia, impedia o jogo da sedução e igualava ambientes supersticiosos e iluministas no mesmo temor ao inapropriado. É verdade que muito abuso ainda se esconde sob a cobertura da cantada ou da liberdade de conquistar. A nudez de Davi, contudo, nada tem a ver com isso nem ameaça a inocência das crianças.

Uma vez, entrevistei Pierre Cabanne, um dos biógrafos de Picasso. Foi em Paris. Estávamos num café da rua de Vaugirard. Um bêbado ouviu a nossa conversa e disse que Picasso era um “debochado”. Em francês, significa alguém desavergonhado, capaz de atos libidinosos. O estudioso riu e sussurrou: “A época de Picasso era debochada”. Se em 1857 Gustave Flaubert e Charles Baudelaire foram processados por atentado ao pudor público por Madame Bovary e As flores do mal, no começo do século XX já havia, especialmente na arte, um tom de ruptura absoluta com as interdições moralistas.

Talvez um espírito conciliador proponha uma solução pacificadora para o “caso Davi”: um tapa-sexo. Ou um shortinho. Afinal, nos tempos que correm, e como correm – para trás, em algumas situações – não transigir é sinal de radicalismo. Professores de história da arte terão de avisar antes de mostrar Davi: “Atenção, imagem que pode ferir sensibilidades”. Ou pedir autorização expressa dos responsáveis.

Florença exibe pornografia a céu aberto.

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