Juremir Machado da Silva

Polêmica em torno de “O avesso da pele”

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Polêmica em torno de “O avesso da pele” Jeferson Tenório, autor de "O avesso da pele" | Foto: Carlos Macedo/Divulgação Companhia das Letras

Jeferson Tenório, embora nascido no Rio de Janeiro, é hoje o principal escritor do Rio Grande do Sul nos cenários nacional e internacional. Ele começou com o ótimo O Beijo na parede (Sulina) e decolou com O avesso da pele (Cia das Letras). Ganhou o Jabuti, principal prêmio literário brasileiro, e traduções em muitos países. A diretora de uma escola de Santa Cruz do Sul pediu a retirada desse livro do acervo do seu estabelecimento por considerá-lo inadequado, em função de termos “chulos”, para uso com adolescentes em sala de aula.

Em vídeo, ela disparou: “Lamentável o Governo Federal através do MEC adquirir esta obra literária e enviar para as escolas com vocabulários de tão baixo nível para serem trabalhados com estudantes do ensino médio”. De quebra, pediu a retirada dos 200 exemplares enviados para a sua escola, no que foi respaldada pela 6ª Coordenadoria Estadual de Educação. O expurgo foi, mais tarde, cancelado por determinação superior. O que, afinal de contas, provocou essa reação?

Trechos como este: “Vem minha branquinha. Vem, meu negão. Chupa a tua branquinha. Chupa o teu nego. Adoro tua pele branquinha. Adoro a tua pele, meu nego. Adoro tua boceta branca. Adoro teu pau preto. E de repente vocês gozavam. E dali para a frente será sempre assim que irão gozar”. Tudo dentro do contexto de crítica ao racismo cotidiano.

Uma pergunta se impõe: na época das telenovelas, em todos os horários, e do BBB24 ainda há algo que não possa ser dito quando se trata de falar da realidade do dia a dia e dos seus preconceitos? Tenório tem razão ao salientar que alguns palavrões chamaram mais atenção do que o racismo, foco da sua narrativa. Por esse caminho, livros como Capitães da areia, de Jorge Amado, seriam cancelados, como já escrevi aqui e repito como modo de argumentação e contextualização.

Vítimas de uma sociedade cruel, os “capitães da areia” sobrevivem como podem. O livro pode ser emocionante, ainda que, às vezes, quase esqueça algum personagem pelo caminho. No mínimo, mostra a crueza da sua época, 1937, ano de implantação da ditadura do Estado Novo no Brasil, tempo de cangaço e de Lampião. É um elogio aos deserdados da sociedade opulenta, os malandros, ladrões, cangaceiros, todos aqueles que não têm ninguém por eles. Uma saída é apontada: a organização de classe, a luta operária, a união que faz a força.

É nesse contexto que Pedro Bala vive e estupra “negrinhas”: “No fim da rua Pedro Bala viu um vulto. Parecia uma mulher que andava apressada. Sacudiu seu corpo de menino como se sacode um animal jovem ao ver a fêmea, e com passo rápido se aproximou da mulher que agora entrava no areal. A areia chiava sob os pés e a mulher notou que era seguida. Pedro Bala podia vê-la bem quando ela passava sob os postes: era uma negrinha bem jovem, talvez tivesse apenas quinze anos como ele. Mas os seios saltavam pontiagudos e as nádegas rolavam no vestido, porque os negros mesmo quando estão andando naturalmente é como se dançassem. E o desejo cresceu dentro de Pedro Bala, era um desejo que nascia da vontade de afogar a angústia que o oprimia. Pensando nas nádegas reboleantes da negrinha não pensava na morte de seu pai defendendo o direito dos grevistas, em Omolu pedindo vingança na noite de macumba. Pensava em derrubar a negrinha sobre a areia macia, em acariciar seus seios duros (talvez seios de virgem, sempre seios de menina), em possuir seu corpo quente de negra”.

A menina era virgem. Bala faz uma concessão: sexo anal.

Era a época? Era a violência do sistema? Era um mundo de abandonados? Certamente. Mas a narrativa parece naturalizar o acontecido. Consumado o estupro, Bala acompanha a menina.

“Ela, antes de desaparecer na esquina, cuspiu no chão num supremo desprezo e ainda repetiu:

— Desgraçado… Desgraçado…

Primeiro ele ficou parado, depois deitou a correr no areal e ia como se os ventos o açoitassem, como se fugisse das pragas da negrinha. E tinha vontade de se jogar no mar para se lavar de toda aquela inquietação, a vontade de se vingar dos homens que tinham matado seu pai, o ódio que sentia contra a cidade rica que se estendia do outro lado do mar, na Barra, na Vitória, na Graça, o desespero da sua vida de criança abandonada e perseguida, a pena que sentia
pela pobre negrinha, uma criança também.

‘Uma criança também’ — ouvia na voz do vento, no samba que
cantavam, uma voz dizia dentro dele.”

Pedro Bala só se apaixonará quando surge Dora, uma menina órfã, tão loira quanto ele, que se derreterá:

“– Teu cabelo é bonito! ­– disse ele.

Ela riu, e o olhou o cabelo dele.

– O teu também”.

Dora será uma capitã da areia. Morrerá depois de libertada de um orfanato. Será amada platonicamente pelo Professor, menino mestiço, pintor e grande leitor. Ela será, pouco antes de morrer, do loiro Pedro Bala, que ficará arrasado com a sua morte.

“Por isso virou uma estrela no céu. Uma estrela de longa cabeleira loira, uma estrela como nunca tivera nenhuma na noite de paz da Bahia”.

E mais:

“A felicidade ilumina o rosto de Pedro Bala. Para ele veio também a paz da noite. Porque agora sabe que ela brilhará para ele entre mil estrelas no céu sem igual da cidade negra”.

Questão anacrônica:

Por que na “cidade negra” os heróis eram loiros?

Será isso também parte do que se chama de racismo estrutural.

Jeferson Tenório, que está em alta pelo seu talento, só tem a agradecer por essa promoção inesperada. Nada como uma tentativa de exclusão para alavancar a glória de um excelente livro. Já foi.

Tambor tribal (Caetano total)

Caetano dá bandeira | Foto: Marcela Donini

Teve show de Caetano Veloso em Porto Alegre. Aos 81 anos, o “velhinho” está em forma. Canta e dança como um menino. Nem água toma. Jogaram-lhe uma bandeira palestina. Pegou, abriu e exibiu. Caetano, como se sabe, pode andar por caminhos próprios, mas nunca amarela.

Parêntese da semana

“Parêntese #214: Genocídio”. Luís Augusto Fischer: “Quem tem coração anda há semanas assustado, sofrendo sem saber o que fazer, com o que acontece em Gaza, em que 30 mil pessoas morreram (talvez um terço delas crianças), 70 mil foram feridas e umas 600 mil crianças palestinas passam fome, segundo o site Poder360, num processo disciplinado de guerra do governo direitista de Israel (não do estado de Israel em si, muito menos dos judeus como etnia) para vingar as 1200 e tantas vidas (mesma fonte) ceifadas pelo terrorismo do Hamas, a quem o atual primeiro-ministro jurou destruir a qualquer preço”.

Frase do Noites

“O importante é nunca se arrepender de nunca ter se arrependido do que se fez com o coração leve e a mente quente”.

Imagens e imaginários

No Pensando Bem, que vai ar todo sábado, 9 horas, na FM Cultura, 107,7, em parceria com a Matinal, a revista Parêntese e a Cubo Play, e apoio da Adufrgs Sindical, Nando Gross e eu entrevistamos o mítico agitador cultural Claudinho Pereira, homem de muitos talentos e histórias, criador do Planeta Atlândida. Uma conversa leve e divertida sobre a vida de um cara generoso e apaixonado por cultura.

Escuta essa

Artista de muitos sucessos, Caetano é bom do começo ao fim. Alegria, alegria

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