Juremir Machado da Silva

Porto Alegre de aniversário

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Porto Alegre de aniversário Foto: Alex Rocha/PMPA

No século XIX, o francês Arsène Isabelle andou pelo Rio Grande do Sul. Em suas memórias, escreveu: “Em setembro de 1833, resolvi ir visitar Porto Alegre, subindo o Uruguai e atravessando uma parte das antigas Missões e a província de São Pedro. O sr. Edouard Nouel, de Angoulême, um dos meus associados no estabelecimento que montara em Buenos Aires, e Eugênio Gamblin, o preparador trazido da França, mostraram desejos de me acompanhar”. Parece que ele nos apresenta a prova retrospectiva da mudança climática negada por muitos.

Olhem só o que ele disse: “Sabei que não se goza, apenas, uma vista agradável em Porto Alegre; goza-se, também, uma boa saúde, e não há clima que mais convenha aos europeus do que o seu. Não se sentem os calores sufocantes da praia do Rio de Janeiro, nem as polvaredas e as noites frias de Buenos Aires: é um ar temperado, embalsamado, puro e saudável. Basta dizer-se que os médicos não fazem fortuna ali, e que os próprios farmacêuticos se veem obrigados a transformar-se em perfumistas”. Nem parece da nossa escaldante capital que ele fala.

Há momentos fofos que nos arrancam suspiros: “Eleva-se em anfiteatro, sobre uma inclinação de mais ou menos sessenta metros, a bela cidadezinha de Porto Alegre, cujos tetos cor-de-rosa, um pouco elevados e salientes, destacam-se admiravelmente coroando casas brancas ou amarelas, de uma arquitetura simples e graciosa”.

A cidade crescia: “Porto Alegre é uma cidade muito nova. Conta, apenas, uns sessenta anos, desde sua fundação. Pouco antes dessa época, seu sítio atual estava coberto de florestas sombrias, que serviam de asilo a jaguares, tamanduás, gatos-bravos e jacarés. Atualmente, é a capital da província do Rio Grande do Sul ou de São Pedro. Pode ter doze mil habitantes, e até quinze mil devido à população flutuante de estrangeiros que vêm de toda parte, para ali comerciar temporariamente. Nestes dois últimos anos, sobretudo, ela começou a experimentar um crescimento rápido, que vai sempre aumentando. Não foi pequena a minha surpresa, quando me garantiram que, há dois anos, construía-se, ali, uma casa por dia”.

Nem tudo, porém, eram tetos rosas: “Os navios podem atracar, ali, para carregar ou descarregar suas mercadorias. Os fardos, por pesados que sejam, são transportados por negros ao pátio da alfândega, para serem examinados; dali, outros negros (porque a raça africana tem no Brasil a função dos cavalos e das mulas) os transportam para seu destino. Terei ocasião, um pouco mais adiante, de dizer uma palavra sobre a sorte dos escravos na província do Rio Grande. Viajantes, que tinham sido testemunhas da crueldade dos colonos franceses e ingleses, acharam o jugo dos escravos mais suportável no Brasil. Mas eu, que vi, na Argentina e na Banda Oriental, os negros livres, industriosos, fazendo os brancos viverem e colocados, enfim, na posição de homens, tenho o direito de achar deplorável a sorte deles no Brasil e de denunciar a infâmia dos europeus, que não têm vergonha de levar a sua imoralidade até o comércio clandestino da carne humana!!!”.

Faltava investimento em escolas: “A educação é muito descuidada na província do Rio Grande, e isto se reconhece imediatamente: os moços destinados à advocacia, à medicina e ao sacerdócio são enviados à universidade de São Paulo. Só havia escolas primárias elementares em Porto Alegre, quando por ali passei”. A elite estava em São Paulo.

A polarização ideológica imperava: “Editam-se quatro ou cinco jornais periódicos, inteiramente consagrados à política. Os habitantes de Porto Alegre, como os das outras cidades do Império, estão divididos em dois partidos: o dos caramurus, que compreende os partidários e os defensores do governo monárquico, e o dos farroupilhas, partidários do governo republicano”.

O viajante não gostou de nossas mulheres: “Sinto ter de repetir, mas é uma verdade que não posso calar: as brasileiras dessa província não são nem belas nem graciosas. Em vão carregam-se e sobrecarregam-se de joias, de fantasias, de flores, de bugigangas. Não conseguem animar seus rostos, dar expressão aos seus olhos ou ter esse ar de liberdade nos movimentos que tanto seduz nas portenhas […] Diz-se que são ardentes na intimidade, apaixonadas até o excesso, mas apaixonadas por elas mesmas… São compensações que procuram, avidamente”.

Gostou mais dos homens, mas viu neles um grave defeito: “Os homens seguem, também, as modas parisienses. São, falando de um modo geral, mais bem-dotados em conjunto do que as mulheres, ainda que tenham um defeito comum, o nariz muito longo e pontudo”.

O tratamento dados aos escravos não lhe escapou. Expandiu-se: “No Rio Grande, como em todas as antigas possessões espanholas e portuguesas, os negros e mulatos são a gente de ofício, isto é, os homens laboriosos, os trabalhadores, aqueles, enfim, que têm mais necessidade de empregar sua inteligência. Infelizmente, porém, não passam de escravos e, sobretudo, de negros! São, fatalmente, uns brutos, uns vis usurpadores do nome de homens. E, entretanto, esses brutos asseguram a subsistência e todos os prazeres da vida aos seus indolentes senhores! Sabeis como esses senhores, em sua superioridade, tratam seus escravos? Como tratamos os nossos cães!”

Como era esse tratamento dado pelos senhores aos seus escravos?  “Começam por chamá-los com um assovio e, se não atendem imediatamente, recebem dois ou três tabefes da mão delicada de sua encantadora ama, metamorfoseada em harpia, ou um soco ou um brutal pontapé do seu amo grosseiro. Se tentam explicar-se, são amarrados ao primeiro poste, e, então, o senhor e a senhora vêm, com grande alegria, ver flagelar, até que o sangue brote, aqueles que, as mais das vezes, só cometeram a falta bem inocente de não terem podido adivinhar os caprichos de seus senhores e donos!!!”. Segundo o viajante, podia ser ainda pior.

“Feliz, ainda, o desgraçado negro, se seu amo ou sua ama não tomar uma corda, um chicote, um cacete ou uma barra de ferro, e golpear, no seu furor brutal, o corpo do pobre escravo, até que os pedaços arrancados de sua pele deixem o sangue escorrer sobre o corpo inanimado, porque o comum, nesses casos, é levantar o negro desfalecido para curar suas feridas! E sabeis com quê? Com sal e pimenta, como se trata a chaga de um animal que se quer preservar dos vermes! Pensam que esse tratamento não é menos cruel do que as chicotadas? Pois bem, vi essas coisas no ano da graça de mil oitocentos e trinta e quatro! E vi mais ainda”. Mais do que isso?

Sim, mais: “Há senhores, bastante bárbaros, principalmente na campanha, que mandam fazer incisões nas faces, nas costas, nas nádegas, nas coxas dos seus escravos, para meter pimenta dentro delas. Outros levam seu furor frenético ao ponto de assassinarem um negro e lançá-lo como um cão ao fundo de um barranco. E se alguém, estranhando sua ausência, perguntar pela sorte do negro, terá esta resposta fria: morreu. (O filho da p… morreu.) E não se fala mais nisso. Há, entretanto, leis severas para essa espécie de crime”.

Imagens da Porto Alegre de 1834: “Todos os dias, das sete às oito horas da manhã, podeis assistir um drama sangrento, em Porto Alegre. Se fordes até a praia, ao lado do arsenal, defronte de uma igreja, diante do instrumento de suplício de um divino legislador, vereis uma coluna levantada sobre um pedestal de pedra, e junto a la… uma massa informe, alguma coisa que pertence, certamente, ao reino animal, mas que não podeis classificar entre os bímanes e os bípedes… É um negro!… Um negro condenado a duzentas, quinhentas, mil ou seis mil chicotadas! Passai adiante, retirai-vos dessa cena de desolação: o infortunado não é mais do que um conjunto de membros mutilados, que se reconhecem dificilmente sob os pedaços sangrentos de sua pele flagelada”. E dizer que foi anteontem. Isabelle foi criticado por seus “exageros”. Não poderia ser tão horrível quanto ele dizia.

Tambor tribal (Medalha Cidade de Porto Alegre para Nilson May)

Médico e escritor, grande conhecedor da obra de Franz Kafka, Nilson May é uma pessoa especial. A sua marca mais evidente é a generosidade. Ama a cultura e faz o que pode para incentivá-la. Hoje, às 20 horas, no Theatro São Pedro, ele receberá a Medalha Cidade de Porto Alegre, uma homenagem da prefeitura da capital. Nada mais justo. May já fez muito por Porto Alegre. A sua última obra é a Casa da Memória Unimed Federação/RS, na rua Santa Terezinha, 263. Um belo centro cultural sob medida para exposições de arte e palestras. 

Parêntese da semana

Parêntese #218: Piauí, Armênia. Luís Augusto Fischer dá o recado: “Nelson Rodrigues uma vez escreveu uma enfiada de crônicas falando no Piauí. Começou com uma menção casual ao estado brasileiro, que ele aproveitou para desenvolver na forma de uma pergunta autocrítica: há quanto tempo ele não pensava no Piauí? Segundo sua lembrança, desde uma velha canção popular, que circulava nos tempos de sua infância, nos anos 1910 (era “O meu boi morreu”)”. E então? “Um sentimento parecido me invadiu quando conheci o Daniel Scandolara e soube de sua intimidade com a Armênia. Há quanto tempo eu não pensava na Armênia? Desde que li uma tradução (ruim) de um livro de contos do genial William Saroyan, filho de armênio imigrado para os EUA. Li o livro porque o Caetano Veloso o cita e elogia – e não me frustrei”.

Frase do Noites

      “A superioridade moral dá a seres humanos o direito de cometer grandes baixezas antes de serem condenados pelos mesmos parâmetros”.

Imagens e imaginários

No Pensando Bem, que vai ar todo sábado, 9 horas, na FM Cultura, 107,7, em parceria com a Matinal, a revista Parêntese e a Cubo Play, e apoio da Adufrgs Sindical, Nando Gross e eu entrevistamos a poeta e publicitária Claudia Schroeder, autora de As línguas são para outras coisas. Uma conversa sem censura sobre censura, poesia erótica, liberdade, feminismo, machismo e outros tema quentes do momento.

Escuta essa

Caetano Veloso cantando Menino Deus é Porto Alegre demais:

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