Juremir Machado da Silva

Psicanálise é ciência ou bobagem?

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Psicanálise é ciência ou bobagem?

A microbiologista Natalia Pasternak ficou famosa durante a pandemia opinando sobre tratamentos precoces e negacionismos tardios. Brilhou em defesa da ciência. Tive a oportunidade de entrevistá-la algumas vezes no Esfera Pública, na Rádio Guaíba. Ela preside o Instituto Questão de Ciência. Natália está em meio à grande polêmica nacional do momento em função do livro que publicou com o jornalista Carlos Orsi, seu marido, editor da revista Questão de Ciência e do diretor do IQC: “Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério” (editora Contexto).

A lista de pseudociências que não merecem ser levadas a sério inclui astrologia, homeopatia, acupuntura, medicina tradicional chinesa, curas naturais, curas energéticas, modismo de dieta, psicanálise, paranormalidade, disco voadores, pseudoarqueologia, antroposofia e poder quântico. Li o livro de cabo a rabo, presente de meu amigo, colorado e médico, Leandro Minozzo. A pergunta é: deixa rabo? Sim e não. Essa resposta seria invalidada como não científica. Os autores juram amor à dúvida e só apresentam certezas. Blindam-se contra críticas alegando, ao final da obra, que cada um tem “uma pseudociência de estimação”. Assim, tentar salvar alguma delas dessa caçada ao charlatanismo significa confissão de afeto por uma mentira.

Depois de patrolar os seus objetos de avaliação e fazer picadinho de suas fundamentações esfarrapadas, Natália e Carlos contam uma anedota e tentam emplacar um carinho relativista: “Não se trata de desqualificar ou demonizar gente que acredita em práticas de saúde sem comprovação científica ou que tem ideias exóticas (e desmonstravelmente falsas) sobre a história humana ou a própria natureza da realidade”. Uau! Imagina se fosse para desqualificar! Em geral, os processos instruídos são convincentes, ainda que requentem um pouco velhas críticas como se tivessem acabado de descobrir a roda. A luta é contra “ideias ruins” ou “bobagens” que “se convertem em doutrinas, ideologias, escolas e sistemas exatamente porque fazem aquilo que a ciência – por seu compromisso com a ética e a verdade – é incapaz de fazer: prometem curas, soluções e explicações, aqui e agora, para todos os males que afligem o ser humano”.  

Não custaria ao casal, falando no compromisso ético da ciência, dar uma ida ao cinema e ver “Oppenheimer”, filme sobre a construção da bomba atômica, ou visitar Hiroshima e Nagasaki. Outra sugestão seria a leitura de “Contra o método”, do físico austríaco, naturalizado americano, Paul Feyerabend, que diz: “A ciência aproxima-se do mito, muito mais do que uma filosofia científica se inclinaria a admitir. A ciência é uma das muitas formas de pensamento desenvolvidas pelo homem e não necessariamente a melhor. Chama a atenção, é ruidosa e impudente, mas só inerentemente superior aos olhos daqueles que já se hajam decidido favoravelmente a certa ideologia ou que já tenham aceito, sem sequer examinar suas conveniências e limitações”

Em tempos de terraplanismo e de combate a vacinas, cabe avisar: Paul Feyerabend era um grande cientista, um craque em filosofia da ciência e epistemologia. Citá-lo nada tem a ver com legitimação de pseudociência. Serve, contudo, como diria Edgar Morin, defensor de um paradigma da complexidade, para discutir limites e recomendar uma sábia humildade. Pasternak e Orsi, às vezes, parecem nadar num cientificismo do século XIX, tão arrogante e ruidoso a ponto de figurar ingênuo na profissão de fé heroica do cientista neutro.  

Fica a pergunta: a psicanálise cabe no mesmo saco da astrologia e dos discos voadores? Ou é só provocação para vender livros e criar polêmica? Fiz terapia. Foi útil. Não me curou de nada. Não era psicanálise propriamente dita. Compartilho muitas das críticas ao freudismo como “narrativa legitimadora”. Não a tenho como minha falácia de estimação. Por um mecanismo psicanalítico, na visão antipsicanalítica de Natália e Orsi, devo estar enganado, resistindo à objetivação, como diria um Pierre Bourdieu. Mesmo assim, a pergunta volta: psicanálise e cura pela imposição das mãos cabem no mesmo saco?

Astrologia e homeopatia

O processo contra a astrologia é rápido: o céu dos astrólogos, mapeado por Ptolomeu, não corresponde ao céu real. O resto é fabulação. Se a astrologia é milenar, a homeopatia tem reles duzentos anos, inventada pelo médico alemão Samuel Hahnemann. Qual o problema? Não entrega o que promete. “Hoje sabemos que a maioria das diluições homeopáticas é tão intensa que não resta nenhum traço do suposto princípio ativo no medicamento administrado ao doente, que na verdade está consumindo apenas açúcar, água ou álcool, dependendo do caso”. Se bem não faz, mal não faz? Pasternak e Orsi afirmam que males são feitos: abandono de tratamento científico, obtenção ilegítima de recursos públicos, etc. Para os autores o problema não é só que tais práticas existam, mas que tentem se legitimar como científicas e com isso sejam reconhecidas por organismos estatais de saúde.

Há algum benefício? Nada mais do que efeito placebo. Uma espécie de ilusão em função de estar recebendo tratamento. O princípio da homeopatia é dinamitado: “Afirmar que, quanto mais diluído um composto, mais potente ele fica, contraria todas as leis da Química, Física e Biologia”. Aí a conversa é de políticas públicas para a saúde: “Na Inglaterra, os hospitais públicos pararam de financiar homeopatia em 2018. A França parou de reembolsar remédios homeopáticos em 2021 […] No Brasil, em contraste, a homeopatia é considerada uma especialidade médica, reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina, e faz parte do PNPIC (Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares), lançada em 2006”. Um derradeiro argumento dos homeopatas, o de que a água tem memória, guardando o princípio ativo original na diluição, é rejeitado por nunca ter sido “comprovado cientificamente”. Homeopatas, claro, estão em pé de guerra.

Sabedoria tradicional chinesa e outras tradições

O tiroteio contra a acupuntura e a Medicina Tradicional Chinesa (MTC) é total: “MTC é filosofia, teologia, ideologia”. Trata sintomas de diabetes “com chá de espinafre, aipo, grão de soja, além de acupuntura e moxabustão”. Pau puro contra o Conselho Federal de Medicina brasileiro, que “fecha os olhos para a questão da legitimidade e reconhece a acupuntura como prática médica […} E o nosso Ministério da Saúde permite que o Sistema Único de Saúde patrocine mais de duas dezenas de terapias (são hoje 20 práticas integrativas e complementares oferecidas no SUS) cuja base de evidência é tão ou mais frágil que a MTC”. Não sobra muito.

Todas essas práticas, sustentam os autores, não passam no teste da cientificidade, randomização, duplo cego, grupo controle. A Medicina Tradicional Chinesa não passaria de um truque do líder revolucionário comunista Mao Tsé-tung para oferecer amparo a 540 milhões de chineses quando só tinha 51 mil médicos à disposição. A sabedoria oriental chinesa não passaria de um composto de superstição, ignorância, astúcia política e necessidade social. Na acupuntura tudo seria aleatório: “Por que os pontos de acupuntura deveriam ser tão mais fáceis de prever, encontrar e perfurar corretamente? É muito mais razoável supor que, na verdade, tanto faz, porque os pontos e meridianos são imaginários”, dizem Natalia Pasternak e Orsi. Testes com agulhas falsas, que não perfuram, teriam produzido os mesmos resultados que com agulhas verdadeiras. Puro efeito placebo.

E assim vai o livro, destruindo práticas típicas do New Age, essa era do retorno do irracional por outros meios. Um capítulo ataca a suposta vantagem do natural sobre o artificial. Sustenta que quase não há natural, havendo manipulação humana em praticamente tudo. De certo modo, a indústria farmacêutica e o agronegócio mandarão medalhas por frases como esta: “Ser natural não é garantia de ser seguro ou benéfico”. Ou esta: “Não faz sentido traçar uma linha entre pesticidas naturais e sintéticos, inferindo automaticamente que o natural é inócuo e o sintético faz mal”. A questão seria de dose. O jornalismo “acrítico” apanha por sugerir que “produtos químicos sintéticos apresentam riscos à saúde”. Tudo teria a ver com “mercado do natural”.

Há no livro uma pegada zombeteira contra modismos intelectuais: “E existe o consumidor por vaidade, que se sente num plano espiritual superior por causa da aula de yoga, meditação (estudos de psicologia indicam que atividades ‘mente-corpo’ tendem a reforçar, e não suprimir o narcisismo dos praticantes) e do pedigree do tomate que põe na salada. Que quer pertencer a um grupo que faz yoga com roupas de grife, que só consome alimentos orgânicos e ‘limpos’, e que é ‘empoderado e dono da própria saúde. É o grupo que faz ‘sua própria pesquisa’. Esse perfil, em geral, não espera ficar doente para correr atrás do terapeuta holístico: engolir placebos faz parte do estilo de vida”. Rola alguma mágoa aí ou é só estilo provocativo mesmo? É verdade que quem recusa esse estimo pretensamente e moderno e sem preconceitos, sofre etarismo: velho que não aceita um olhar mais amplo. Artistas adoram esses modismos capazes de separá-los do rebanho.

E a psicanálise nisso?

Sobra pau para reiki, curas energéticas de todos os tipos, energia vital, imposição das mãos e outros procedimentos apresentados como fantasiosos, cujo marketing explora termos que vendem bem como sabedoria tradicional, milenar, originária, holística e natural. No lado oposto, há espaço para as derivações do quântico, ruptura com as leis da física, o que tornaria tudo possível, praticável e curativo. Qual o problema da psicanálise e das “curas pela fala”? Elas não curam. Ou não curariam. Pontapé inicial: “Em princípio, não há nenhum motivo para que as terapias e os procedimentos que se propõem a aliviar as dores da mente estejam isentos de passar pelos mesmos procedimentos de testagem e escrutínio crítico que se aplicam aos tratamentos propostos para aliviar as aflições do corpo…”

A instrução do processo lista todas as acusações tradicionais: Freud, o fundador, mentiu na apresentação dos seus casos famosos, como “o homem dos ratos” e “o homem dos lobos”; “a inclinação teórica pessoal do terapeuta influenciará sua leitura dos resultados”; tendência ao viés confirmatório; apagamento dos casos de insucesso; guerras fratricidas dentro do campo, com formação de grupos fechados, como seitas, dependentes da palavra do mestre e guia. A exceção seria a “Terapia Cognitivo-Comportamental”, considerada, muitas vezes, como adestramento, o que revelaria a inclinação positivista dos autores.

De toda maneira, a própria base de evidência da TCC “encontra desafios e problemas de qualidade”. Não havendo dualidade corpo/mente, corpo/alma, corpo/espírito, por que adotar outros procedimentos para tratar doenças psíquicas? Pasternak e Orsi tratam de refutar o argumento de que esse campo faria parte de outra episteme (Michel Foucault) ou paradigma (Thomas Kuhn), conceitos que tratam de bem separar, puxando as orelhas de quem os confunde. O efeito positivo dependeria mais do terapeuta do que da “técnica usada”.

O apreço pela psicanálise não passaria de um modismo intelectual, desenvolvido entre as décadas de 1930 e 1970, “quando passou a ser chique usar ideias derivadas dos trabalhos de Freud e de seus discípulos hereges mais famosos (entre eles Carl Jung, Wilhelm Reich, Jacques Lacan) como chave interpretativa em campos tão dispares quanto história, literatura, arte, sociologia e filosofia”.

Veredito: “Desde pelo menos a década de 1950, no entanto, a teoria de Freud é dada como exemplo típico de pseudociência (isto é, de um sistema de crenças que busca para si o mesmo prestígio e valor devidos às ciências legítimas, mas sem merecê-los) em obras de filósofos que tratam do ‘problema da demarcação’ ou, na melhor das hipóteses, como um projeto científico, de início legítimo, mas que fracassou e degenerou em uma forma de religião secular”.

Por fim, o grande problema, o inconsciente seria “insustentável tanto do ponto de vista lógico quanto da evidência empírica”.

Natalia Pasternak e Carlos Orsi situam a questão em torno da fundação e da cura. A psicanálise, mesmo se não cura esquizofrenia, pode ser útil mesmo sem curar, desde que não faça essa promessa, que parece um tanto desfasada. Não precisa ser resumida à falácia do “bem-estar”, termo denunciado como astúcia para não se referir à saúde, podendo ser útil em processo de reflexão e autoconhecimento. Reduzi-la à pareidolia (“tendência de interpretar estímulos vagos e aleatórios como tendo significado”) e apofenia (“tendência de enxergar conexões entre eventos independentes ou dados aleatórios”) parece um tanto grosseiro. Não raro o texto exibe viés ideológico não declarado, como quando zomba da psicanálise como “ópio dos intelectuais pretensiosos”.

A refutação da “constelação familiar”, moda que anda tomando conta do judiciário, embora curta, tem mais poder de fogo.

Eles se protegem, sem convencer nem se esforçar, contra a crítica inevitável que jogam foram também as ciências humanas e sociais. Para quem sabe do poder do efeito placebo deveria ser lógico procurar atividades psíquicas para além da consciência.

Ao fim e ao cabo, Natália Pasternak e Carlos Orsi parecem dizer que apenas a ciência ocidental sabe e cura, com máquinas e remédios.

Um amigo bem-humorado diz que faltou o pilates.

Enfim, dizer que a psicanálise é um absurdo que não pode ser levado a sério, poderia levar um Gilles Deleuze ressuscitado a soprar:

“Que bobagem?”

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