Juremir Machado da Silva

Uma peça de Millôr chamada “É…”

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Uma peça de Millôr chamada “É…” Millôr Fernandes | Foto: Cynthia Brito

Sempre que visito o Ivan Pinheiro Machado, na L&PM, saio com uma pilha de bons livros. Na semana passada, ganhei dele três obras de Millôr Fernandes, que faria cem anos em 2023 se não tivesse sido requisitado para fazer humor em plano mais alto: “Flávia, cabeça, tronco e membros”, “Duas tábuas e uma paixão” e “É…” Isso mesmo. “É… baseado num fato verídico que apenas ainda não aconteceu”. Millôr foi bom frasista, tradutor de Shakespeare e dramaturgo com densidade. O que seria dele nestes tempos de politicamente correto, de identitarismo e de cancelamentos? Imagino.

“É…” estreou em 15 de março de 1977, na ditadura, no teatro Maison de France do Rio de Janeiro, com Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Helena Pader, Renata Sorrah e Jonas Bloch, com direção de Paulo José. Podia dar errado com um time desses? Como nada tenho contra spoiler, ainda mais de uma peça consagrada, conto o essencial: é a história de um babaca que namora uma guria, não, garota, maravilhosa. Como ele é estéril, fica decidido, por serem de vanguarda e intelectuais, que ela teria filho com outra cara, o professor dele, um cinquentão com ares de guru da turma, com 25 anos de casamento nas costas, fiel, na medida do possível, e supostamente bem-resolvido. Imagine leitor o rolo em que se metem!

Millôr espancava as modas intelectuais da época, zombava do jargão dos acadêmicos, ironizava o modismo das relações abertas pretensamente sem ciúme e interpretava a “alma” humana quando ainda se podia falar em alma mesmo sem ser religioso e ser humano ainda não era tão vergonhoso como denuncia a crítica ao antropoceno. Em alguns momentos, dá para rir. No mais, tem uma pegada dura, desnudando paradoxos, virando o jogo, fazendo ver que numa história dessas quem perde menos ainda perde bastante.

Vera, a mulher trocada pela mais nova, disparava: “Você acredita que uma mulher da minha idade, com a minha formação, abandonada no mundo, pode sair por aí dando como uma louca da tua geração e se achar muito feliz, muito realizada. As que dizem isso estão mentindo, Sara, estão todas mentindo. Umas vacas velhas mentindo na beira do túmulo. Dormem com a alma em chagas, acordam com a alma em frangalhos. Quanto mais procuram encher o leito mais o deserto geme em seus lençóis”. O que respondem as mulheres de hoje ao dramaturgo? Talvez comecem dizendo “vaca é…” Não sejamos deselegantes. Creio que o velho humorista se surpreenderia com as respostas. Além disso, talvez fosse visto como mais um velho branco, heterossexual e tóxico. As Veras de hoje sofreriam menos? Dariam troco pesado e rápido? Não veriam deserto algum nas suas camas? O que seria?

Especulo. Só sei que nada sei. Não é mesmo, Só? A intimidade me permite chamar Sócrates assim. Talvez alguma leitora possa me mandar uma resenha desse drama. Em “É…” o velhão se dá bem, de acordo com o seu parâmetro de análise, fica com a mais nova, que larga o namorado e logo engravida. Em algum momento, achei que ela ficaria com os dois.

Aí, me parece, é que Millôr se revela um homem do seu tempo. É…

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