Juremir Machado da Silva

Violência e poder na obra de Tabajara Ruas

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Violência e poder na obra de Tabajara Ruas Tabajara Ruas | Foto: Eduardo Fernandes / Feira do Livro

Fui convidado para falar de violência e literatura no Instituto Contemporâneo de psicanálise. Falei de grandes livros. Era para Tabajara Ruas ter sido patrono da Feira do Livro de Porto Alegre há muito tempo. Afinal, trata-se do maior escritor gaúcho em atividade. Fiz o dever de casa. Reli três obras capitais do autor: “Os varões assinalados”, “O amor de Pedro por João” e “Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez”, todos publicadas pela L&PM. A primeira conta a história da Revolução Farroupilha. Há sangue no pasto. A segunda trata do golpe militar que derrubou Salvador Allende do poder no Chile e da repressão no contexto das ditaduras da época. A última é um grande livro da literatura latino-americana, um romance de iniciação, passagem de um menino à vida adulta sob o choque do assassinato de um tio aventureiro e da sombra do incesto.

Em “O amor de Pedro por João”, Tabajara Ruas apresenta algumas das cenas de tortura mais fortes da literatura sobre esse tipo de tema: “Foi empurrando a cabeça dela para dentro da água fedorenta, do corpo de Pedrinho que se retorcia. A cabeça mergulhou ao lado da de Pedrinho, a água transbordou. Sovaco segurou a cabeça dela dentro do vaso até sentir o braço cansado. Levantou-a, descansou o braço, observou-a tossir, respirar, tornou a afundá-la.

– E o moleque? – Perguntou Tadeu.

– Tira ele daí.

Tadeu puxou Pedrinho pelas pernas, deitou-o no piso.

– Sovaco, acho que o moleque apagou.

– Apagou nada.”

É preciso parar a leitura, tomar fôlego, desanuviar. A história parece dizer: isso fomos nós, isso somos nós, ao menos, parte de nós, aquela que nos impôs as suas ditaduras, aquela que ainda ronda por aí com seus nostálgicos, seus discípulos, seus ídolos torturadores. A leitura atualiza o tempo. O leitor pratica anacronismos permanentes.

Em “Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez” tudo acontece numa mesmo fragmento de tempo: a briga dos meninos e a caçada ao homem dos adultos, o duelo no futebol e o acerto de contas entre o delegado enciumado e o contrabandista obcecado: “Meu pai e o brigadiano gordo olharam ao mesmo tempo para ele com súbita ferocidade. Meu pai ligou o motor. Senti o corpo mover-se junto ao meu com o solavanco, quando arrancou. O fuquinha começou a deslizar pela cidade com sua carga, iluminado pela lua cheia. Eu via as ruas conhecidas, as casas conhecidas, os cinamomos conhecidos – tudo eu conhecia tão perfeitamente que parecia impossível andar na cidade a essa hora, por essas ruas, acompanhado de meu pai e com tio Juvêncio nos braços”. O menino e o cadáver do tio num abraço inesquecível.

Esse corpo retirado do necrotério parece dizer ao menino: crescer é assim, conhecer a morte: “Deixamos o brigadiano na esquina da Praça e tomamos a Duque. Ao ver as luzes de Libres estremeci com o pressentimento de que o corpo em meus braços ia mover-se, espichar a mão, arrancar o lençol e mostrar o rosto sorridente, os olhos desafiadores. Mas o corpo continuava imóvel, morno, naquela inexplicável distância. Fui atravessado por uma rajada de horror. Mordi um grito. Meu pai olhou pelo espelho: – Já estamos chegando”.

Onde? No outro lado da inocência. Não é preciso dizer que o romance “Os varões assinalados” disseca a violência da guerra civil: “Nesse mesmo dia, Teixeira aproximou-se do inimigo. Levava quinhentos homens armados, entre eles cento e cinquenta infantes comandados por Garibaldi. Ao cair da noite, a infantaria manteve o primeiro contato com a tropa avançada dos imperiais. Foi um tiroteio às cegas, curto e feroz, que serviu para pôr em alerta os dois exércitos. Estiveram de prontidão toda a noite. Quando a madrugada de verão dourou as grimpas dos pinheirais, encontram-se frente a frente, em posição de combate”.

O inimigo, na guerra civil, é o irmão, o vizinho, a outra parte de nós mesmos, aquela que se separa como uma impossibilidade de convivência, a contradição que grita. Em “Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez” esse outro, esse perigo, volta provocativamente do outro lado do rio, vem da Argentina de trem, atravessa a ponte para encontrar a morte. Em “O amor de Pedro por João” um dos personagens atravessa o Brasil, do Nordeste a Santa Maria, enquanto o outro vem do Chile, atravessa a cordilheira, para encontrar o companheiro de lutas. É a morte que os espera. Toda a mediação é feita pela violência. Ainda que os livros de Tabajara Ruas exibam uma prosa poética insinuante e bela, a violência impregna cada página.

Essa violência do passado distante, do passado recente e do passado mítico, o da infância que nunca se distancia, apresenta-se como o elemento central, talvez fundador de uma impossibilidade de realizar a utopia: a república livre e soberana, o regime sem o fosso da desigualdade, a entrada na idade adulta sem traumas nem más lembranças. Ruas, sem fazer alarde, parece dizer: viver é uma violência sem fim, ainda que sonhemos e lutemos pela paz absoluta.

Tabajara Ruas é o romancista da violência sempre presente.

Se estivesse em Gaza que romance escreveria?

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