Juremir Machado da Silva

Visão do paraíso que restou

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Visão do paraíso que restou

Sergio Buarque de Holanda, agora mais conhecido como o pai de Chico Buarque, foi uma mistura de historiador e de sociólogo. Modéstia à parte, pois não há glória nisso, como eu. Os títulos dos livros dele sabem mexer com o possível leitor: Raízes do Brasil, Visão do paraíso, Monções, Caminhos e fronteiras. O que restou do paraíso, dando de barato que essa visão, de fato, habitou o imaginário dos invasores? Dependendo do olhar de cada um, restam muitos pedaços desse mundo que espantou os europeus sujos, ávidos por riquezas fáceis e cheios de monstros em suas cabeças até o fundo cheia de dogmas.

Quando ando pelo Brasil, tento capturar numa foto qualquer o instante eterno da ideia de paraíso. Depende muito da luz. Sergio Buarque não idealizava esses primeiros observadores do que passaria a se chamar Brasil: “Nada fará melhor compreender tais homens, atentos, em regra geral, ao pormenor e ao episódico, avessos, quase sempre, a induções audaciosas e delirantes imaginações, do que lembrar, em contraste com o idealismo, com a fantasia e ainda como senso de unidade dos renascentistas, o pedestre ‘realismo’ e o particularismo próprios da arte medieval, principalmente de fins da Idade Média”. É com um realismo suave que Maria Aparecida, catadora de mariscos no paraíso de São Miguel dos Milagres, resume o seu trabalho: “É assim, tem dias bons e dias ruins. Vou fazendo”. O baldinho não cai da cabeça? “Ah, não, tem equilíbrio”. E lá fica ela no mar azulado.

Não se queixa, não se sente solitária, faz o que deve ser feito. Mas e a beleza do lugar? “É muito bonito, sempre bonito”. O sol brilha, o mar se faz verde para lhe dar razão. Pescadores falam dessa beleza com gestos, como quem diz “olhem e constatem”. Nesse realismo pedestre se esconde, ou nem isso, um olhar acostumado ao belo, esse belo que se deixa ver sem solenidade nem rituais. Por trás do cenário, porém, anda a vida concreta da rua estreita, do asfalto, da luta cotidiana, dos afazeres contados em horas perdidas ou ganhas. Em qualquer um dos lados, o paraíso oferece uma das suas faces brilhosas.

Do outro lado do rio, o coqueiral, o areal muito fino e branco, o mar muito azul, as ondas lambendo os pés dos poucos passantes, uma sombra se oferecendo como alternativa universal. Na imensidão esverdeada, a catadora parece imobilizada, um quadro feito em rápidos traços, pontilhados, emanações de cores. É tudo? Talvez seja bem pouco como descrição em se tratando de uma pintura a céu aberto, tendo como pano de fundo o próprio fundo de tudo, esse horizonte salgado que se afasta quando nos aproximamos e se recompõe quando apenas o contemplamos. Maria Aparecida parece tão integrada à paisagem que fica difícil desenhar o contorno, definir moldura, separá-la do resto.

Uma das visões do paraíso certamente é que integra numa mesma imagem o olhar do observador casual e o conjunto da obra. Nada está fora do lugar, tudo se funde, até a maré subir e engolir a terra por algumas horas. Assim vamos vivendo enquanto olhar ainda é livre.

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