Nanni Rios, colunista
Nanni Rios

Livros e censura

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Livros e censura The Parthenon of Books, de Marta Minujín | Foto: Heinz Bunse

Dia desses, na livraria, entraram uma mulher e uma criança, que, descobri depois, eram tia e sobrinha. Me contaram também que um passeio comum nos momentos que passavam juntas era visitar livrarias. Cada uma na sua seção preferida, elas compartilhavam comentários e exclamações sobre os achados. A mulher mostrava real interesse nos assuntos da menina, que, por sua vez, tinha curiosidade sobre o que a tia puxava das estantes. 

Depois da minuciosa expedição, o combinado era que cada uma escolheria um livro para levar. A primeira escolha da menina foi um livro grande com capa dura e algumas centenas de páginas, cujo volume ela conseguia até abraçar com seu corpinho mirrado de 8 ou 9 anos. Um livrão, elas concordaram. Quanto custa? Ao ouvir o valor, a tia faz uma careta discreta. Vamos ver o que mais tem de legal aqui, disse, na intenção de encontrar outra opção mais barata, ainda dentro do campo de desejo da menina. E é nessa repescagem de livros infantis que a nossa cena começa.

A menina pegou um livro de capa colorida, olhou por um segundo e o largou rápido, como se fosse uma batata quente: esse aqui nem pensar, meu pai vai jogar fora! É que os pais dela são evangélicos, me disse a tia, revirando os olhos. Elas vasculharam toda a seção de infantis e a cena da batata quente se repetiu algumas vezes. Os livros foram sendo descartados um a um: ou a menina não achava interessante, ou se achava, elas averiguavam melhor e concluíam que o pai ia jogar fora quando visse. Alguns eram descartados só pela capa: uma criança negra sorridente ostentando orgulhosamente o cabelo black power com um lacinho de lado – nem pensar, meu pai vai queimar isso aqui.

Houve um momento em que a tia desistiu. Olhou com alguma dor para o livro que tinha escolhido para si, pousado sobre a mesa do caixa, já antevendo que teria que abrir mão dele. Pegou de novo nas mãos o livrão da menina: Histórias de ninar para garotas rebeldes. A tia titubeou, enquanto folheava o caríssimo livro: será que teu pai vai aceitar isso? As duas ficaram em silêncio por alguns instantes enquanto as páginas passavam. Até que a menina sugeriu: esse eu posso ler só na tua casa! Pronto, resolvida a questão.

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O mundo literário está em polvorosa, já faz uns dias, em função da censura sofrida pelo livro O avesso da pele, de Jeferson Tenório, em algumas cidades do Rio Grande do Sul, Paraná, Mato Grosso do Sul e Goiás. 

Depois que a diretora de uma escola em Santa Cruz (RS) denunciou a presença de palavras “de baixo calão” no livro, outras instituições aderiram à censura. A Matinal apurou que até a Secretaria de Educação de Porto Alegre enviou uma pesquisa às escolas da rede municipal para levantar quantos exemplares de O avesso da pele cada instituição tinha recebido do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD). Ao ser questionada sobre a justificativa ou o objetivo da pesquisa, a pasta desconversou. Lembrei do meme, aquele: é pro meu TCC.

É fácil entender por que o livro de Jeferson Tenório incomoda. Ele denuncia o racismo na polícia, nas relações afetivas interraciais e no sistema educacional. A narrativa da extrema-direita (que não lê) sobre o livro distorce os fatos. Agora, o PNLD é o novo “kit gay” e O avesso da pele é a “mamadeira de piroca” da vez. Esses são os mitos que, desde 2014, alimentam a extrema direita e também uma massa de incautos a partir do terror moral sobre a tal “ideologia de gênero”.

O fato é que nem kit gay e nem ideologia de gênero existem. Já a mamadeira de piroca você encontra nas melhores (?) sex shops do ramo, porque todo censor é cheio de fantasias.

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O mundo literário está em polvorosa (parte 2), faz uns dias, em função do sumiço de e-books da loja do Kindle. Algumas editoras (como Boitempo, Todavia, Moinhos, entre outras) começaram a postar justificativas nas redes sociais para acalmar os ânimos, alegando que a Bookwire – distribuidora alemã de e-books, responsável pelo fornecimento de mais de 80 mil títulos de 700 editoras brasileiras – está num imbróglio burocrático com a Amazon e, por isso, a venda dos livros digitais está suspensa até que a negociação avance.

O que eles chamam de “negociação” tem outro nome: são as condições impostas unilateralmente pela Amazon para a venda de livros em suas plataformas. Quem não aceita, tá fora. Não tem negociação. A venda de e-books está suspensa por um motivo simples: a Amazon tem esse poder. Se ela quiser tirar um livro de circulação, ela tira. Se ela quiser tirar 10 títulos e quebrar uma editora, ela pode. Se ela quiser inviabilizar a venda de 80 mil títulos de 700 editoras por razões econômicas, afetando um mercado inteiro, ela faz.

Esse era um mal que até então atingia majoritariamente o mercado de livros físicos, cujas editoras eram obrigadas a se submeter a descontos abusivos e condições de pagamento ultrajantes para terem seus livros distribuídos pela empresa de Jeff Bezos. Agora, o câncer que se alastrava livremente em metástase (uma vez que os principais atores desse mercado – o Estado e as grandes editoras – insistiam em não radicalizar, apostando em tratamentos alternativos em contraponto à agressividade da Amazon) chegou ao mercado de e-books. Quem diria.

E diante da imponência do livro físico – cuja materialidade não pode e nunca poderá ser desprezada como valor – o e-book virou presa fácil para a sanha mercenária de uma empresa que vende tudo que se possa imaginar com a estratégia de descontos exorbitantes, porque não precisa ter lucro com vendas, uma vez que seu maior faturamento vem da receita com armazenagem de dados em nuvem. Coincidência?

A Amazon faz dumping, uma prática comercial predatória criminalizada em diversos países, menos no Brasil. Ela vende livros por um preço mais baixo do que o preço de custo das editoras. Filantropia? Não. É estratégia. Ao mesmo tempo em que esmaga a margem de receita das editoras, ela abre mão do lucro que teria enquanto intermediária da venda para dificultar (ou até inviabilizar) a venda em outros canais, como as livrarias físicas, que, em geral, praticam o preço tabelado sugerido pela editora.

É bom lembrar que o preço do livro envolve toda uma cadeia de pessoas que são remuneradas pelo seu trabalho: escritores, agentes literários, editores, capistas, tradutores, revisores, preparadores, designers, diagramadores, redatores, pesquisadores. Além disso, tem impressão, montagem, embalo e transporte dos livros. É um ecossistema arrojado.

A estratégia é imperialista. Tipo War mesmo: ir tomando tudo, patrolando, planificando. Pra que? Pra ter, não importa. E se os ecossistemas ruírem e o mundo ficar insustentável? Essa é fácil: Jeff Bezos tem a lua.

*

A gente se assusta com a censura ao livro O avesso da pele, com toda a razão, porque é um choque saber que alguém teria o poder de dar uma canetada e recolher um livro de todas as escolas e bibliotecas. Imagine um livro desaparecer, simplesmente parar de circular, até que um dia alguém se pergunte: será que esse livro existiu?

É uma sensação distópica. Impossível não lembrar de Fahrenheit 451, o romance de Ray Bradburry sobre um mundo em que os livros são proibidos e as casas e prédios são à prova de fogo. A principal função das brigadas de incêndio, portanto, é queimar livros a partir de denúncias de cidadãos de bem sobre bibliotecas clandestinas.

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“Pegue este povoado e divida as páginas, tantas por pessoa. E algum dia, quando a guerra tiver terminado, os livros poderão ser escritos de novo. As pessoas serão convocadas, uma a uma, para recitar o que sabem, e o imprimiremos até que chegue outra Era da Escuridão, na qual talvez tenhamos que repetir toda a operação. Mas esta é a maravilha do homem: nunca perde o ânimo nem o gosto o suficiente para abandonar o que deve fazer, porque sabe que é importante.”

(em Fahrenheit 451, de Ray Bradbury)

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“Posso pensar em poucas imagens mais tristes do que uma livraria quase vazia ou do que os restos de uma fogueira em que os livros queimaram.”

Marquei o trecho acima no livro Livrarias do jornalista espanhol Jorge Carrión e ao revisitá-lo para escrever esta coluna, me veio a imagem de uma obra da artista argentina Marta Minujín, exibida na Documenta de Kassel, um dos maiores e mais importantes festivais de arte contemporânea do mundo, na Alemanha, em 2017. 

Ela criou uma réplica em grande escala do Partenon de Atenas com estrutura em aço revestido com 100 mil livros embalados em plástico translúcido. Todos os exemplares foram obtidos por meio de doação a partir de uma lista de 170 títulos censurados em todo o mundo. A forma do Partenon foi escolhida para simbolizar os ideais estéticos e políticos da primeira democracia do mundo e a praça onde a obra foi erguida não deixa por menos: a Friedrichsplatz, onde cerca de 2 mil livros foram queimados durante o regime nazista.

A escultura de livros exibida em Kassel é, na verdade, uma reedição da obra O panteão dos livros, que Marta Minujín fez em seu país natal em 1983, após o fim da ditadura civil-militar na Argentina. O mote era o mesmo: celebrar a nova liberdade intelectual e democrática ao apresentar os livros banidos pelo regime. Em ambas as instalações, após o período de exposição, a estrutura era desmontada e os visitantes podiam pegar os livros e levar consigo, afinal era parte da obra recolocar aqueles livros em circulação.

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Jorge Carrión é autor também de um texto-manifesto chamado Contra Amazon: sete razões / um manifesto, que foi publicado inicialmente numa revista digital, depois ganhou versão impressa em cartazes colados em livrarias espanholas, até se juntar a outros textos e virar livro. 

No Brasil, a Editora Elefante encampou o projeto e publicou: Contra Amazon e outros ensaios sobre a humanidade dos livros, edição caprichada que ganhou um anexo com textos de livreiros brasileiros.

Do artigo que dá título ao livro, destaco resumidamente as sete razões:

  1. Porque não quero ser cúmplice da expropriação simbólica
  2. Porque somos todos ciborgues, mas não robôs
  3. Porque repudio a hipocrisia
  4. Porque não quero ser cúmplice do neoimpério
  5. Porque não quero que me espiem enquanto leio
  6. Porque defendo a lentidão acelerada, a relativa proximidade
  7. Porque não sou ingênuo

*

É recente o boom de literaturas centradas em temáticas LGBTQIAPN+ circulando por aí, nos livros, na TV, no cinema etc. E quem não tem um tio/pai/primo/vizinho que diz, em tom de reclamação: “agora se vê até homem com homem e mulher com mulher”, ao que a gente ouve e se pergunta: agora? 

Se a homossexualidade (só pra pegar um exemplo de alvo da moralidade vigente) existe desde que o mundo é mundo, por que alguém acredita (acredita?) que ela seja uma invenção dos novos tempos? Essa também é fácil de responder: porque as narrativas sobre homossexualidade foram sufocadas durante séculos por um estigna clandestino, marginal e invisível. E funcionou.

Eventualmente, alguém pode estar lendo isso e achando exagero. Onde já se viu aproximar um monte de assuntos e realidades de proporções tão distintas? Será uma paranoia achar que a Amazon tem um projeto de poder imperialista e perigosíssimo para frustrar os planos de uma sociedade que se pretende justa e menos exclusiva? 

Paranoias necessárias, ao meu ver. E eu adoraria descobrir daqui a um tempo que eu estava errada.

Mas volta aqui que eu tenho um ponto: eu não tô escrevendo isso e achando que vou ser lida pelo meu tio que acha (acha?) que a homossexualidade é uma invenção dos novos tempos. Eu tô falando com as pessoas pretensamente progressistas que se dizem contra a censura e fizeram as vendas de O avesso da pele crescerem 400% – nas livrarias de bairro? Não, na Amazon.

Paranóias necessárias, eu insisto: esse imbróglio da Bookwire com a Amazon mostra que todo o cuidado é pouco. A triagem de leitura das crianças em poder de pais (ou gestores, ou professores, ou diretores) evangélicos é uma tragédia.

Se um dia a Amazon apertar mais – tanto, mas tanto! – a ponto de inviabilizar a “negociação” com as editoras e a retaliação for tirar os livros do ar (seja por motivos econômicos, vá lá, ou por outros motivos morais – alô, distopia, vai saber), sabe quem é que vai garantir que esses livros não parem de circular ou desapareçam? Isso: as livrarias. 

Então te liga, bico de luz.

Antes de comprar um livro censurado na Amazon, manda um zap pra Baleia ou pra Bamboletras ou pra Cirkula ou pra Clareira ou pra Macun ou pra Paralelo30 ou pra Taverna ou pra Via Sapiens. Manda até pra Livraria Londres, se quiser. Mas tá mais do que na hora da gente evitar comprar livros de uma empresa cujo dono quer colonizar até a lua.

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