Reportagem

Censura a “O avesso da pele” se alastra e retoma debate sobre suposta doutrinação nas escolas

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Censura a “O avesso da pele” se alastra e retoma debate sobre suposta doutrinação nas escolas Jeferson Tenório, autor de "O avesso da pele" | Foto: Carlos Macedo/Divulgação Companhia das Letras

Bancada PSol-Rede em Brasília levou caso ao MPF. Em Porto Alegre, vereadoras da direita reforçam coro de críticas contra a “linguagem chula” em livro de Jeferson Tenório, e associação de pais e mães relembra movimento “Escola sem partido”

Em menos de 24h após vir à tona a censura do livro O avesso da pele, por ordem da 6ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE), a Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul derrubou a medida. Não foi suficiente para encerrar o caso. No Paraná e em Goiás, os governos decidiram recolher a obra de Jeferson Tenório dos colégios públicos.

Como reação às críticas que focam em trechos específicos sobre cenas de sexo, abundam manifestações de solidariedade ao autor, que vive em Porto Alegre. Hoje a Livraria Clareira, no Bom Fim, promove a leitura na íntegra do romance, que deu a Tenório o Prêmio Jabuti em 2021 na categoria Romance Literário, um dos mais proeminentes da literatura brasileira, e aborda temas como racismo e violência policial. Um ano antes, em 2020, o escritor foi patrono da Feira do Livro de Porto Alegre.

Nesta quarta-feira, o caso chegou ao Ministério Público Federal. Deputados federais da bancada PSol-Rede solicitaram a instauração de um inquérito contra o governador paranaense Ratinho Jr. e o secretário de Educação do Paraná pela censura do livro, por conta da violação de leis federais e dos princípios da administração pública.

Para os parlamentares, a retirada de exemplares de redes públicas é baseada em “interpretação distorcida e descontextualizada da obra”, e viola pressupostos das políticas de igualdade racial. “Além de empobrecer o debate cultural e minar a capacidade dos estudantes de desenvolverem pensamento crítico e reflexivo sobre os problemas sociais que o país enfrenta”, diz a representação.

Em Porto Alegre, pelo menos duas vereadoras usaram suas redes sociais e o plenário da Câmara Municipal para criticar a obra. Mônica Leal (Progressistas) exibiu o vídeo em que a diretora santa-cruzense Janaina Venzon, da Escola Estadual de Ensino Médio Ernesto Alves de Oliveira, lê os trechos considerados por ela como impróprios. A queixa da diretora embasou a ordem de retirada dos livros. “Eu, Mônica Leal, não tenho coragem de repetir essas palavras, por uma questão de respeito. Imagina as crianças em sala de aula”, afirmou a vereadora. Em suas redes sociais, disse que o governo nega “o direito da família de decidir como, quando e em que profundidade tratar de temas relacionados à sexualidade com as crianças”.

Também na tribuna, Fernanda Barth (PL) caracterizou a obra como “linguagem chula e inadequada para as salas de aulas”. “O MEC, estruturalmente, é um problema. Acontece em todos os governos de ter livros impróprios ou inadequados para as idades sendo distribuídos”, disse a vereadora – a obra foi aprovada para o Ensino Médio ainda em 2022, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). “Quanto mais subversão dos costumes, melhor. É um processo de deseducação”, disse a vereadora, que se queixou sobre o que ela entende por “doutrinação” nas escolas.

“Pânico moral”

A discussão em torno de uma suposta doutrinação nas escolas não é nova. Foi nesse contexto que nasceu a Associação Mães e Pais pela Democracia, em 2018. Socióloga e presidenta de honra do grupo, Aline Kerber informou à Matinal que, em defesa da liberdade de cátedra, a entidade também enviou representações ao Ministério Público Federal (MPF) e ao Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MP-RS), baseada nos artigos 205 e 206 da Constituição Federal, que garantem a gestão democrática no ensino.

Kerber ressalta que a tentativa de censura fere resoluções sobre o ensino da cultura afro-brasileira. “O episódio, que envolveria a retirada de livros das bibliotecas, não é isolado. Recordo de casos anteriores, como o ocorrido em um conhecido colégio particular porto-alegrense, no qual precisamos nos mobilizar contra a tentativa de retirada do livro de quadrinhos baseado na obra de Anne Frank. A articulação com o MPF e o Instituto Anne Frank foi fundamental para debater e manter a obra na grade curricular”, conta.

Ela lembra ainda que, recentemente, escolas públicas também foram alvo da onda de censura. “Esse pânico moral contagia muito facilmente”, afirma Kerber. A socióloga aponta para um contexto mais amplo, no qual o embate ideológico influencia diretamente na gestão educacional, com a ascensão da extrema direita e defesa de uma agenda conservadora.

O movimento de “Escola sem Partido”, impulsionado a partir de 2014 pela família Bolsonaro, é visto como um dos precursores dessa interferência à liberdade de ensino e à pluralidade de ideias. Aline Kerber diz que isso resulta em autocensura por parte de docentes, que se sentem pressionados a evitar temas como questões de gênero, raciais e de classe social, além de educação sexual – que não é o foco do livro de Tenório. “O pânico moral se alastra muito facilmente. Educação sexual e segurança corporal são temas bastante sensíveis, as famílias não entendem que é preciso debater isso dentro da escola, como forma de prevenção à violência. Precisamos de um trabalho permanente de fortalecer a educação e a democracia”, finaliza a socióloga.


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