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Confissões de um médico de postinho na “pandemência”

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Confissões de um médico de postinho na “pandemência” Relato de médico gaúcho ilustra dificuldades enfrentadas por profissionais da saúde em todo o País (Foto Breno Esaki Agência Saúde DF)

Fui nocauteado por uma sinergia de epidemias: epidemia de Covid-19, de pequenas violências cotidianas, de corrupção de valores humanísticos, demência de colegas médicos. Me rendi.

Sou “profi” (professor) e “médico de postinho” (embora prefira chamá-lo clínica da família) em um pequeno município do interior  há 11 anos. Agora “estou de atestado” como dizem meus pacientes, na pior hora do pandemônio que se transformou a pandemia no Rio Grande do Sul. E ainda por cima por motivos de “saúde mental” – entrei em burnout/esgotamento. Faço parte do grupo que mais se contaminou e mais morreu. Nos EUA, morreram 3,5 mil de nós. 

Eu tive Covid-19 e foi muito pior do que esperava. Semanas de cama de tanta fraqueza. E agora me rendi. Me sinto culpado por estar de atestado talvez na hora em que meus pacientes mais precisam de mim. Mas minha amiga assistente social, minha psicóloga e minha psiquiatra foram unânimes que precisava me “afastar por um tempo”. Se assustaram com meus sintomas neurovegetativos de tremores, palpitações, sensação febril, dor de cabeça, etc – aqueles fenômenos modulados por vias neuro-hormonais de fuga ou luta…Perceberam que eu estava a ponto de fazer bobagem, ou largar tudo. Sofri assédio moral por um colega. Mais uma vez. Foi a gota d’água.

Mas o que eu quero mesmo é a empatia de você, leitor. Preciso, na verdade, do seu perdão. E se puder sua compreensão por “me render”. É que eu estou cansado de engolir tanto sapo, por desmandos de gestores (em todos os níveis). De dar murro em ponta de prego por achar que posso usar a ciência e o cuidado médico para proteger meus pacientes de abusos cotidianos nas fábricas de calçados na Serra Gaúcha, e enfrentar outros fatores sócio-ambientais de adoecimento, mesmo contra interesses. Cansado de esperar que colegas me apoiem para implementar medicina baseada em evidências. 

Por me afogar num tsunami de mercantilização desenfreada da saúde, com a promessa de imortalidade se você puder comprar mais serviços médicos. Nauseado com a aceleração de comportamentos miméticos de masculinidade tóxica violentando feminilidades e o planeta. Estou cansado da onda de fake news e infodemia. É uma dor que vai acumulando aqui no peito. Uma desvalia que vai te corroendo. Tombei como um poste podre. 

Acho que no meu caso fui nocauteado por uma sindemia, uma sinergia de epidemias: epidemia de Covid-19, de pequenas violências cotidianas que intoxicam como gotas de veneno, de fofocas, de corrupção de valores hipocráticos e humanísticos, de risco eminente de destruição de anos de trabalho, de sofrimento e abandono de pacientes (que perdem pés, dedos, dentes, saúde por descaso), de isolamento, de demência institucional, demência da mídia, demência de colegas médicos, demência de cidadãos. De envenenamento da minha resiliência. PANDEMÊNCIA. 

Aí veio uma sequência de socos no estômago que me levou à lona. Manejar uma paciente grave em casa, sem saber informações técnicas mínimas por causa da negligência de colegas e/ou descoordenação na hora de preencher prontuários. Quando a vi pela primeira vez, supus, pela ausculta do tórax que sua severa falta de ar fosse por “água no pulmão”. Pedi um raio X, que estava inacessível pelo pandemônio. Após explicar cuidadosamente todos detalhes, puncionei seu pulmão, mas não havia líquido. Pedi desculpas. E lamentei que não havia registro prévio de ausculta já previamente alterada em prontuário para guiar melhor a hipótese clínica. Como aterrissar um avião no escuro sem ter pista iluminada? 

Por ter que admitir para os filhos, pessoas queridas e dedicadas, que faltam leitos hospitalares, que familiares podem se contaminar por Sars-cov-2 no hospital, por ter que reconhecer que estamos precisando alocar leitos para quem tem maior chances de viver. Por ter que avisar familiares de que pode faltar oxigênio para sua mãe – e que de fato faltou por um breve momento. Por ter que insistir e insistir para ter o mínimo de oxigênio e dignidade em casa. Por ter medo de terminar morfina, o remédio que mais protege de sofrimento desnecessário. E temer ter que dar “schnapps” (aguardente, em alemão), como se fazia em tempos remotos.

Por medo de ser o último a saber o que está acontecendo na saúde. Por medo de ser vítima de fake news. Por receio de que informações vitais do andamento da pandemia em minha comunidade –como acesso a serviços e medicamentos – não cheguem até mim nesta verdadeira guerra de informações. Por dizer que já devíamos estar de lockdown, e ser ignorado.

Por ter que manejar outro caso equilibrando-me entre o imperativo da ciência e a extrema agitação e negação de filhas que acusam o vírus de ser uma invenção comunista da Globo. Por ter que orientar familiares a não se aglomerarem mesmo no momento da dor. Por me preocupar com a proteção contra contágio do padre, que felizmente podia fazer o enterro. Por faltar saco preto para sepultar paciente falecida por Covid.  

Por ter que acalmar a esposa de um paciente, apavorada com a falta de ar do marido em casa, e explicar que faltam leitos hospitalares mesmo para jovens em estado grave pela Covid-19. Por atender paciente de covid grave, em uso de polifarmácia tóxica, incluindo cloroquina (foto), e negligenciado pelo serviço de saúde (que não registra em prontuário).

Por tentar ajudar ao paciente e sofrer gritos e ameaças da colega que, mesmo sem ler meus encaminhamentos, me acusou de erro de conduta médica. E ter de tirar o time de campo para não jogar mais lenha na fogueira.  

Tenho medo que meu enfrentamento obstinado contra essa pandemência piore ainda mais o caos. Me sinto como na história do Rei Salomão na qual brigar pelo meu direito seria pior para o bebê. É degradante. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Burnout.

Apesar dessa pandemência, como prescrito pela minha médica, agora posso meditar com calma, com tempo para respirar e escrever em vez de surtar, ou chutar o pau da barraca, sem ter que abandonar impulsivamente uma década de construção com suor, sangue e lágrimas. Agora sinto que posso ponderar.

Sim, o fazer do “postinho” é doloroso, estafante e traiçoeiro. Então por que eu sigo? Talvez, por ver nisso, uma vocação para criar uma realidade mais bonita sem deixar ninguém para trás. Às vezes sinto como se fosse um chamado de Deus. Uma missão. Encontrar-me com um paciente e poder ajudá-lo é, como diz meu pai, um privilégio. Ou, até mesmo, uma cachaça. Acreditar que posso ajudar uma comunidade é injeção de satisfação na veia. Aqui reencontro meu sentido e meu caminho.

Finalizo, filosófico, citando uma frase que muito me ajudou: “quando olho para dentro e não vejo Nada, isso é sabedoria; quando olho para fora e me vejo em Tudo, isso é amor; e quando entendo que tudo é uma dança, isso é a vida”. Talvez, agora eu esteja mais tranquilo e não precise mais do seu perdão.

Enrique Falceto de Barros é professor e médico de Família e Comunidade.

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