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Diário da Espera: Jandiro Koch

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Diário da Espera: Jandiro Koch Dia 1 2019 foi péssimo. Pouco escrevi aqui [no diário de papel, elástico ao redor da capa, quase cheio]. Perdi um namorado que nunca tive. Nada estava sendo fácil e, isso mais, vivi um luto depressivo, que não conseguia externar. Aquela vergonha de alemoa de confessar a fossa, sabe? Era insuportável com as pessoas, reclamava da madrugada ao pôr do sol, e dormia muito para não reclamar tanto. Passou. Tirei férias, desliguei. Sentei todos os dias nos fundos de casa, olhando, por uma porta de ferro bastante enferrujada, para o quintal com jasmins, ixoras, gengibre azul, hibisco e três-marias insistindo em florir. No meio da minha grande tristeza decidi ser feliz. Começou em dezembro. E deu certo já nesse mês. Não sei como. Vi mais meu jardim. Senti-me leve. Voltei a ler vorazmente, quase sempre acompanhada por chimarrão. Final de março de 2020 e um vírus qualquer ameaça a evolução. Não quero ir na barca de Caronte. O Brasil afunda na pandemia antes de ela chegar; a internet é puro rebosteio. Tento distrações, mas torno às redes sociais. Irrito-me com a negligência com a qual o presidente trata do assunto, cacatua de Donald Trump. Achille Mbembe, filósofo camaronês de certa verve, escreveu sobre necropolítica. A ideia,  grosso modo, é que existe uso de poder político para a salvaguarda de algumas vidas enquanto outras são condenadas ou deixadas à morte. Minha amiga Maristela me ligou hoje. Disse-me para ter cuidado, porque, se fosse chegar mesmo a hora da escolha de pacientes para receber oxigênio, eu, gay, ela, negra, estaríamos no final da fila – dependendo de quem nos atenda. Dia 2 Desde quando o tal de Glicério mencionou os sintomas do Convid-19 como sendo semelhantes a uma “gripezinha”, talvez antes, quando nomeou os alertas da imprensa como “fantasia”, errar minimamente na dose diária de smartphone pode ser veneno. Em mim, dispara algum elemento químico. É orgânico. Sinto a tensão, dor muscular e, talvez, a pressão esteja um pouquinho alterada. A coisa no dorso da mão, onde centrou a ansiedade, parece artrite, LER ou reumatismo precoce. Começo a limpar para mover a atenção para outro foco. Não tenho grandes cuidados com a casa. Prefiro mesmo usar o tempo lendo, observando o vento bater nos arbustos, acompanhar as visitas de sabiás, pombas-rolas, bem-te-vis e joões-de-barro na área verde do terreno. Faxinei sabendo que há um quê de racionalidade nessa coisa toda de pegar balde, vassoura e pano de chão. Acaso eu necessite de uma ambulância, se entrar aqui algum enfermeiro que pense – e espalhe – que não cuido de nada como deveria? Não, não. Herança do pensamento de minha mãe, que sempre olhava a própria residência pelos olhos dos outros. Nem ela era, nem eu sou louco por produtos de limpeza. Sobra apostar que as visitas não vêm. Hoje é raro alguém bater à porta para um chego. Minha mãe foi bem menos sortuda. Veio-me à cabeça aquele namorado que não tive no ano passado. Deletei-o das redes – e minha mente […]

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Dia 1 2019 foi péssimo. Pouco escrevi aqui [no diário de papel, elástico ao redor da capa, quase cheio]. Perdi um namorado que nunca tive. Nada estava sendo fácil e, isso mais, vivi um luto depressivo, que não conseguia externar. Aquela vergonha de alemoa de confessar a fossa, sabe? Era insuportável com as pessoas, reclamava da madrugada ao pôr do sol, e dormia muito para não reclamar tanto. Passou. Tirei férias, desliguei. Sentei todos os dias nos fundos de casa, olhando, por uma porta de ferro bastante enferrujada, para o quintal com jasmins, ixoras, gengibre azul, hibisco e três-marias insistindo em florir. No meio da minha grande tristeza decidi ser feliz. Começou em dezembro. E deu certo já nesse mês. Não sei como. Vi mais meu jardim. Senti-me leve. Voltei a ler vorazmente, quase sempre acompanhada por chimarrão. Final de março de 2020 e um vírus qualquer ameaça a evolução. Não quero ir na barca de Caronte. O Brasil afunda na pandemia antes de ela chegar; a internet é puro rebosteio. Tento distrações, mas torno às redes sociais. Irrito-me com a negligência com a qual o presidente trata do assunto, cacatua de Donald Trump. Achille Mbembe, filósofo camaronês de certa verve, escreveu sobre necropolítica. A ideia,  grosso modo, é que existe uso de poder político para a salvaguarda de algumas vidas enquanto outras são condenadas ou deixadas à morte. Minha amiga Maristela me ligou hoje. Disse-me para ter cuidado, porque, se fosse chegar mesmo a hora da escolha de pacientes para receber oxigênio, eu, gay, ela, negra, estaríamos no final da fila – dependendo de quem nos atenda. Dia 2 Desde quando o tal de Glicério mencionou os sintomas do Convid-19 como sendo semelhantes a uma “gripezinha”, talvez antes, quando nomeou os alertas da imprensa como “fantasia”, errar minimamente na dose diária de smartphone pode ser veneno. Em mim, dispara algum elemento químico. É orgânico. Sinto a tensão, dor muscular e, talvez, a pressão esteja um pouquinho alterada. A coisa no dorso da mão, onde centrou a ansiedade, parece artrite, LER ou reumatismo precoce. Começo a limpar para mover a atenção para outro foco. Não tenho grandes cuidados com a casa. Prefiro mesmo usar o tempo lendo, observando o vento bater nos arbustos, acompanhar as visitas de sabiás, pombas-rolas, bem-te-vis e joões-de-barro na área verde do terreno. Faxinei sabendo que há um quê de racionalidade nessa coisa toda de pegar balde, vassoura e pano de chão. Acaso eu necessite de uma ambulância, se entrar aqui algum enfermeiro que pense – e espalhe – que não cuido de nada como deveria? Não, não. Herança do pensamento de minha mãe, que sempre olhava a própria residência pelos olhos dos outros. Nem ela era, nem eu sou louco por produtos de limpeza. Sobra apostar que as visitas não vêm. Hoje é raro alguém bater à porta para um chego. Minha mãe foi bem menos sortuda. Veio-me à cabeça aquele namorado que não tive no ano passado. Deletei-o das redes – e minha mente […]

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