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Caras amigas brancas

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Caras amigas brancas Mulheres cobram a implementação da Convenção 189, que trata do trabalho doméstico | Foto: OIT Divulgação

A conversa no grupo de WhatsApp começa com um pedido de indicação de doméstica. Não é preciso mais do que meia dúzia de mensagens para que o papo vire um coro de queixas.

As mulheres – não por acaso brancas – reclamam que as candidatas fazem exigências demais, que precisam aumentar a proposta salarial e, mesmo assim, enfrentam dificuldade para encontrar quem limpe suas privadas. “Pedem muito e não querem fazer nada”. 

Não devem saber que as mulheres negras, que são a maioria das trabalhadoras domésticas remuneradas, trabalham quase o dobro para alcançar o salário de um homem branco.

O dado é do Dieese, mas eu li no livro O Pacto da Branquitude, de Cida Bento, leitura obrigatória para homens e mulheres brancos. Se entendemos que o racismo é problema nosso também, já passou da hora de pensar o que significa a nossa condição de branco neste mundo.

Não é só a história dos escravizados que merece ser evocada, a dos escravocratas também. Para que gente branca como eu reconheça a origem da nossa herança de privilégios – e parem de disparar frases preconceituosas como as que pesquei nesse grupo de WhatsApp.

Lugar de trabalhadora doméstica

Neste ano, a PEC das Domésticas completa uma década. Uma reportagem da Folha de S.Paulo revelou que 3 em cada 4 trabalhadoras ainda não têm carteira assinada. Por muitos anos essa foi a realidade de Ernestina Pereira, diretora de formação do sindicato das domésticas de Pelotas, uma das homenageadas da Themis, ONG feminista que celebrou 30 anos na semana passada. Hoje aposentada por questões de saúde, ela segue dedicando-se à luta das trabalhadoras domésticas remuneradas, uma trajetória que já tem mais de três décadas. 

Ernestina Pereira (Acervo pessoal)

No seu relato, ela destaca o passado escravagista dos brasileiros, que parece estar sempre à espera de uma oportunidade para se fazer presente. Ernestina cita os casos recentes de trabalho análogo à escravidão que tomaram os jornais nas últimas semanas. Mas observa que, no seu universo, são cotidianos os episódios de exploração, com um agravante: as vítimas trabalham, e muitas vezes vivem, dentro da casa dos seus opressores. “Somos uma categoria muito perseguida e desrespeitada”, me disse ontem.

Um dos maiores desafios do sindicato é lidar com um efeito colateral do seu principal objetivo, que é empoderar as trabalhadoras com informação sobre seus direitos. É aí que voltamos à conversa do WhatsApp que comentei antes. Se uma doméstica quer negociar o valor de uma faxina ou se nega a trabalhar nas condições impostas por um patrão ou patroa, é taxada de preguiçosa ou gananciosa. E ainda fica sem trabalhar.

Por isso tantas mulheres se submetem a condições precárias. Ernestina tem também outra explicação: um legado de subserviência. “São anos de repressão. Fomos acostumadas a baixar a cabeça”. 

Ernestina sublinha que “o trabalho de casa é de toda família, da sociedade toda”. Ela defende que a carteira seja assinada mesmo para as trabalhadoras que vão um dia na semana na casa de um empregador. “Pode ter até 5 assinaturas diferentes”, informa. “Quando a trabalhadora adoecer, não vai precisar pedir esmola nem a empregadora vai ficar com remorso. Várias até se dão bem com a empregadora, mas na hora derradeira, não têm recurso. E aí não adianta tapinha no ombro”, alerta.

Apesar de passar por momentos de desesperança frente a tantas histórias desumanas, Ernestina diz que 2023 é um ano para celebrações. A PEC das Domésticas e a lei de 2015 que implementou algumas de suas mudanças trouxeram avanços para a categoria, afirma. A luta agora, diz, é cobrar do novo governo Lula a implementação da Convenção nº 189 da Organização Internacional do Trabalho, documento de 2011 que prevê recomendações para um trabalho mais digno para a categoria.

Ernestina usa sempre “empregadora”, no feminino. Antes de ser uma fala sexista, entendo mais como uma chamada às mulheres, que ainda são as principais responsáveis (e estão sobrecarregadas) pelos cuidados com o lar, para que sejam aliadas nesta luta. Especialmente aquelas que se consideram feministas mas talvez esqueçam que as suas conquistas no mercado de trabalho se devem, em boa parte, às mulheres que cuidam de suas casas e filhos enquanto elas estão fora.

Como diz Ernestina, “se lugar de mulher é onde ela quiser, lugar de trabalhadora doméstica também tem que ser”.


Marcela Donini é editora-chefe do Matinal Jornalismo.
Contato: [email protected]

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