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Por um jornalismo antirracista, bicha, preto, indígena e insurgente

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Por um jornalismo antirracista, bicha, preto, indígena e insurgente Pesquisadora lança livro em Porto Alegre nesta segunda-feira (Foto: Marlon Diego/ Divulgação)

No livro A pauta é uma arma de combate, a repórter e professora Fabiana Moraes critica a suposta imparcialidade do jornalismo brasileiro e defende um jornalismo mais humano

Na semana passada, eu falei neste espaço que “neutro é sabonete de bebê” e defendi as vezes em que tomamos partido aqui no Matinal, seja nas eleições ou em pautas em que direitos fundamentais dos cidadãos estivessem em risco. Hoje volto a abordar a pretensa neutralidade sob a qual muitos jornais se escondem. Mas a palavra agora é da jornalista e professora da Universidade Federal de Pernambuco Fabiana Moraes, uma das vozes mais relevantes, inteligentes e sensíveis no debate sobre a imprensa hoje e que vem a Porto Alegre na segunda-feira para lançar o livro A pauta é uma arma de combate: subjetividade, prática reflexiva e posicionamento para superar um jornalismo que desumaniza (Editora Arquipélago). O lançamento acontece na Livraria Bamboletras às 18h30min, com bate-papo com a autora e a professora e pesquisadora Marcia Veiga.

Em um dos países campeões em desigualdade social, não há espaço para posturas neutras e falsamente equilibradas, defende a pesquisadora. Autora premiada, doutora em sociologia e colunista no The Intercept, Moraes critica o mito da objetividade jornalística. Ao longo dos anos, essa ilusão de que é possível ser isento tem produzido e reproduzido estereótipos referentes a grupos oprimidos que não estão suficientemente representados dentro das redações nem na maior parte das suas produções. Debaixo desse verniz de imparcialidade, seguem invisibilizadas as vozes de mulheres, pessoas negras, pobres e LGBTQIA+. Para pensar sobre essas questões, a pesquisadora nos brinda com um livro “engajado, antirracista, bicha, preto, indígena e insurgente”.

Os critérios historicamente usados até aqui para definir o que é ou não notícia e os enquadramentos dados aos fatos não têm sido suficientes para dar conta da complexidade brasileira. Está na hora, portanto, de procurar novos caminhos, e nenhum lugar é melhor para começar do que a pauta, o norte de toda produção jornalística. Este é também o ponto de partida do novo livro de Moraes, também autora de O nascimento de Joicy (2011), obra reconhecida com o Prêmio Esso, recebido outras duas vezes por Moraes.

A leitura é fundamental para nós, jornalistas, como uma forma de provocar reflexões sobre como estamos retratando esses povos que compõem a maioria da população brasileira. Em que notícias eles aparecem e de que forma? 

Mas não se trata de um livro apenas para jornalistas. A obra oferece a todos a oportunidade de ler a imprensa com um olhar mais crítico e pode ser instrumento para todo leitor interessado em cobrar dos veículos uma postura que esteja à altura da diversidade brasileira. Um livro que pode nos ajudar a pensar juntos, como propõe Moraes, um jornalismo mais humano.

A seguir, leia a conversa com Fabiana Moraes, realizada na tarde de ontem por vídeo chamada.

Como a proposta do jornalismo de subjetividade se contrapõe ao mito da objetividade jornalística?

Vou responder com perguntas. Até onde essa performance da objetividade nos levou até agora? Como a objetividade jornalística explica o fato de o genocídio de populações indígenas ter acontecido durante tanto tempo e ainda ser algo que parece tão distante da nossa realidade? O que é a população indígena a nossos olhos pelo filtro do jornalismo? Como a objetividade jornalística explica o fato de termos naturalizado o genocídio da população negra? No livro, eu conto o caso do Entreviste um Negro, um banco de dados de negros e negras especialistas em vários assuntos criado para que os jornalistas pudessem conversar com eles e dar visibilidade, mas que só vai ser procurado cinco anos, com o assassinato de George Floyd (​homem negro assassinado nos EUA em 2020, estrangulado por um policial branco). Quando falo de jornalismo de subjetividade, tem uma provocação aí, que é usar um termo rechaçado no campo do jornalismo. Entendo que a objetividade é necessária, mas a objetividade dos processos (apuração, checagem, entrevistas…), que é diferente dessa objetividade jornalística de que estamos falando. São cinco os pontos do jornalismo de subjetividade: capacidade reflexiva e contínua sobre o produzimos e vemos; o questionamento dos valores-notícia (critérios sobre o que vai virar notícia); a capacidade criadora e criativa; a nossa sensibilidade hacker; e a ideia de ativismo e as questões da interseccionalidade. É impossível que a gente não se coloque como pessoas que estão tentando traduzir um país calcado no racismo, no patrimonialismo, num profundo classicismo e elitismo, na desvalorização das mulheres. Não é uma negação da objetividade, mas antes de tudo a busca por um jornalismo que dê conta da complexidade que é o Brasil e o jornalismo em si, que é uma atividade complexa, mas muitas vezes colocada em prática através de dinâmicas simplistas, como por exemplo o jornalismo declaratório (quando declarações são publicadas de forma acrítica).  

Você aponta o jornalismo declaratório como um dos fatores que ajudaram a eleger um governo de extrema-direita no Brasil. Por muito tempo, falas de Bolsonaro foram reproduzidas literalmente sem que se apontassem seu caráter violento, sexista, homofóbico ou racista, questões que passaram a ser problematizadas tardiamente. Pensando na formação de novos repórteres, você vê avanços nesse debate dentro das faculdades?

Vou participar de uma defesa de uma tese na USP de um jornalista que fez uma análise de Projetos Pedagógicos de Curso (PPCs) de 20 universidades pelo Brasil e entrevistou professores e professoras. Ele mostra como as bibliografias ainda são bem funcionalistas, muito parecidas com as de quando me formei, no final dos anos 90. Por outro lado, nas entrevistas com as docentes, muitas vocalizam o desejo de mudança nos PPCs. Nos últimos 10, 15 anos, a entrada de uma população negra, mais pobre, indígena mudou a universidade por dentro. Alunos e alunas questionam as bibliografias, trazem outros debates. É uma mudança positiva, e isso se reflete nas redações. Além disso, tem demandas da sociedade como um todo, de pessoas que conseguem vocalizar outras questões, muito pelas redes sociais. No livro, eu apresento um exemplo da capa do AquiPE, jornal que saía em Pernambuco, sobre uma flanelinha assassinada. É uma capa extremamente misógina, com uma foto do bumbum dela. Aquilo provoca reação do Ministério Público e de entidades da sociedade civil que pressionam e fazem o jornal rever (sua postura).

Falando em representatividade, o quanto a falta de diversidade nas redações contribui para o que você chama de um jornalismo que desumaniza? 

Tem duas questões. A primeira questão é que sim, é muito importante ter uma  heterogeneidade maior de pessoas, falas, pensamentos, corpos. No Jornal do Commercio, onde trabalhei por 20 anos, eu observava que existia uma leitura muito pobre da pobreza, como se a pobreza não tivesse heterogeneidade. Talvez a minha primeira abordagem para essas questões com as quais eu trabalho até hoje tenha sido o viés de classe. Minha família é de origem humilde, minha mãe até hoje mora no subúrbio, numa rua que não é calçada, onde a internet pega mal. Meu pai mora no morro, em Recife. Isso não significa que são existências indignas, ou que eu não tivesse acesso a uma série de coisas. Ao meu redor, tinha várias experiências de pobreza diferentes da minha. Mas na redação, eu via uma leitura muito classe média a respeito da pobreza. Tinha pessoas de origem humilde, mas que acabavam simplesmente repetindo o mesmo discurso. Por outro lado, essa ideia de diversidade tem um aspecto de manter a coisa como está mas parecendo que está fazendo diferente. Há uma leitura individualizada de pessoas e grupos, e uma divisão por seções – negros, pobres, indígenas, trans –, como se uma mesma pessoa não fosse atravessada por mais de uma dessas questões. Por exemplo: a editoria de diversidade que a Folha de S. Paulo lança e os programas de trainee para trazer mais pessoas negras para a redação. Maravilhoso, importantíssimo. Mas isso deveria ser realizado em consonância a um entendimento estrutural de como se vivencia o racismo, de como ele se dá. Não fica muito claro o que a Folha quer quando tem essas iniciativas ao mesmo tempo em que publica artigos de opinião falando de racismo reverso ou aquele sobre as sinhás pretas, de Leandro Narloch. Isso revela uma utilização da ideia de diversidade muito mais para cumprir um papel social, fazer uma boa figura.

Uma jogada de marketing, como acontece em tantas outras empresas.

Demais. De bancos a empresas de comunicação. O mercado já assimilou a ideia de diversidade no sentido de fazer uma espécie de lavagem de imagem. Isso é muito perverso com as pessoas que fazem parte das instituições, como foi o caso da Sueli Carneiro (a filósofa desligou-se do conselho editorial do jornal dias depois da publicação do artigo de Narloch em que ele relativizava a escravidão de mulheres negras). Eu sei do valor e do impacto que é, para pessoas negras, estar numa empresa sólida, nunca vou desmerecer isso. São espaços que sim cabem a elas e precisam ser oferecidos, não é favor. Mas entendo também que é preciso ficar muito ligado quando esse processo está atendendo a outros propósitos que não o da heterogeneidade de falas, de pensamentos.

Este caso específico da Folha também não é um exemplo da falsa equivalência, uma prática que tem a ver com esse tema do mito da objetividade? 

Sim, esse é um bom ponto. Muita gente fala da falsa equivalência, de “dois ladismo” (ouvir os dois lados simplesmente para aparentar imparcialidade) e acaba desconectando isso da questão da objetividade jornalística, mas isso está intrinsecamente ligado. Por isso acho que ela é rasa e acaba apequenando o próprio jornalismo. “Estamos trazendo essas duas perspectivas”, justificam. Assim foi com Bolsonaro. Eu fiquei muito impressionada quando li, no dia 30 de outubro, uma matéria na Folha com o Bannon (Steve Bannon, ex-estrategista de Trump procurado pelo jornal para comentar o resultado das eleições no Brasil). Ele foi provocado, ele não fez uma live para falar sobre aquilo. É muito significativo que essa pessoa esteja ali, um dos arquitetos da ideia de desinformação, de fake news, e que  vai prejudicar o próprio jornalismo.

A experiência de viver o bolsonarismo deixou muito evidente como isso que é entendido como objetividade jornalística nos fez mal. Mas objetividade jornalística não é isso. Objetividade jornalística é a gente estar aqui conversando, você fazer entrevista, coletar dados, fazer análise, checar. O “dois ladismo”, essa coisa de escutar os dois lados, um sendo aquele que fala sobre dinâmicas sociais e gente, e o outro falando de destruição de dinâmicas e de pessoas, isso não é objetividade jornalística. É uma tentativa de racionalizar a barbárie. Uma barbárie que não vai morder os calcanhares de quem está produzindo essa falsa equivalência, mas vai sim acometer outros grupos. Também trago no livro o caso do Sérgio Dávila (o diretor de redação da Folha defendeu a posição do jornal de não apresentar Jair Bolsonaro como um candidato de extrema-direita, restringindo o termo “extrema” apenas para facções que pregavam a violência como método político). A maioria da população brasileira – homossexuais, mulheres, indígenas, quilombolas – foi rechaçada pelo discurso de Bolsonaro e pelo bolsonarismo. Mas um dos maiores jornais do Brasil entende que não era violento. Não era violento para quem? Isso tem uma relação interessante com o que eles chamam de identitários, que parece que são pequenos grupos reclamantes, e não a maioria da população brasileira. 

No momento em que usa o rótulo de “identitários”, parece que o próprio jornal admite que esses grupos não estão representados lá dentro, são algo externo.


Exato. Uma estratégia antiga, que tem a ver com essa ideia de racionalidade, com o Iluminismo, com as questões positivistas, com estar de fora do evento e poder falar dele dessa maneira isenta. É isso, eles falam dos identitários como se não fizessem parte, e assim reforçam a ideia de que estão acima, têm um olhar divino sobre as coisas. “Olha, você mulher, você preto, você viado. A gente está aqui, podendo falar sobre vocês.”

Depois dessa cobertura do governo Bolsonaro, que comportamento se pode esperar na nova gestão do Lula por parte da imprensa tradicional?

De acordo com os editoriais que vimos até agora da grande mídia, não vai ter diferença muito grande em relação ao comportamento durante os outros governos Lula. Estou falando do que a empresa pensa. Mas dentro dessas redações, existem vários e várias jornalistas que aprenderam muita coisa com o governo Bolsonaro, e não podemos desconsiderar o que elas podem fazer mesmo dentro de empresas conservadoras, voltadas a uma ideologia mais neoliberal. Nesses jornais, tem pessoas que sofreram na pele ou viram colegas próximos sofrerem aquilo que podemos entender como uma reverberação de como a imprensa naturalizou Bolsonaro. Isso foi pedagógico, não vai se apagar. Vamos ver disputas de formas de cobertura dentro dessas empresas. Principalmente no caso das mulheres, um discurso que já é mais veemente. 

E em relação a veículos novos, como os nativos digitais?

Em relação aos nativos digitais, tem uma cobertura que já é, no geral, mais progressista e comprometida com questões da democracia, que consegue marcar posições melhor do que os jornais empresariais. Entendo que vai haver um ambiente mais propício para que esses coletivos de jornalismo cresçam, depois de termos passado pelo desastre que foi o governo Bolsonaro, com cerceamento e até fechamento de torneira de editais. Aliás, sobre financiamento, ficamos muito na mão das big techs, e isso é uma questão que temos que pensar. Essa certa “autonomia”, entre aspas, na verdade está relacionada a políticas específicas dessas empresas que hoje controlam a comunicação no mundo. O desafio é traduzir o governo Lula fazendo uma cobertura crítica – que é algo de que não se pode abrir mão, ninguém está fazendo assessoria para o governo Lula –, mas também entendendo que não se pode fazer o jogo da direita, que vai estar com os olhos em cima dessas produções.

Ainda sobre o mito da objetividade, que, para o jornalismo ainda está muito ligada à sua própria credibilidade. Você acha que o público confia num veículo que se apresenta como imparcial, que faz esse jogo do “dois ladismo”? Ou a percepção está mudando?

Eu fiz uma experiência, um mero exercício empírico, mas interessante, de como o público reagiu às matérias e postagens sobre as reações do mercado em relação às falas de Lula sobre o Bolsa Família. Li o que as pessoas estavam falando nas redes e caixas de comentários de matérias de jornais como Folha, O Globo e Correio Braziliense. A maioria dos comentários é negativo em relação ao mercado. Críticas muito duras. Acabou soando muito desgastado esse susto dos mercados, principalmente depois que uma população passa pelo desastre que foi a pandemia. Eu não vi as bolsas enlouquecendo quando o Bolsonaro falou que, se reeleito, ia manter os 600 reais (do Auxílio Brasil), que é o que o Lula disse. As pessoas estão mais atentas. A covid e o bolsonarismo fizeram com que o jornalismo passasse a ser mais debatido. Não talvez como estamos fazendo aqui, mas debatendo dentro do TikTok, sobre uma informação que não necessariamente passou pelo filtro jornalístico. As pessoas viram a fila do osso e viram aquele touro dourado da B3 nas ruas de São Paulo. E depois foram colocadas frente a uma manchete dizendo que o Citi diz que o governo Lula começou mal. A reação foi um grande foda-se. “Foda-se o Citi, foda-se a Folha de S. Paulo“. Os jornais vão ter que entender que não estão mais falando para a mesma sociedade de seis anos atrás. Passamos pelo trauma do impeachment, da Lava-jato, foram sucessivos sustos. E aí veio a covid com o governo mais desastroso possível. O sofrimento coletivo nos ensina a re-observar questões que nos circundam, e o jornalismo nos circunda, nos diz o que olhar e como olhar. E quando o jornalismo diz a uma população que acaba de passar por esse grau de sofrimento “não invista no social”, é complicado. Entendo que não é uma questão que deva ser lida como binária, fiscal ou social. Tampouco sou especialista no tema. Mas uma coisa, sim, eu entendo: essa leitura binária acontece e aconteceu sempre em benefício do mercado. Tivemos uma reforma trabalhista que nos levou a quê exatamente? O que temos agora? Não pode colocar a covid no meio, não. A gente já não estava bem em 2019, três anos depois dessa reforma. A gente tinha piorado a condição principalmente de mulheres, que não podem falar de assédio no trabalho por medo de serem demitidas. Há uma série de questões que envolvem gênero e raça e precarização do trabalho. Um ensinamento que está posto é que questões sociais são sim mais importantes hoje, as pessoas estão mais atentas. E causar esses pânicos não tem mais o mesmo efeito na população.

Na primeira eleição do Lula, a cobertura da reação do mercado, esse “pânico” sobre o impacto “desse cara” chegar à presidência, talvez encontrasse mais eco entre as pessoas. Mas 20 anos depois, o contexto social está bem diferente… 

Sim. E isso também expõe uma cobertura muito pobre. Uma forma de não cobrir política pública, não cobrir a política em si. Quando a chapa Alckmin e Lula já era realidade, o que se viu foram matérias falando que eles já tinham brigado no passado! É uma forma tenebrosa de empobrecimento do debate político. Causa um entendimento social da política igualmente pobre, como se a política fosse uma novela a ser acompanhada, e não é. A política está falando da minha vida e da minha morte. “Lula e Alckmin já brigaram” pode ser uma nota de rodapé. Eu quero saber o que efetivamente eles estão pensando sobre políticas públicas para a população. Talvez isso tire esse caráter melodramático das coberturas, que leva a muitos cliques, mas ao mesmo tempo esvazia e empobrece a política e o jornalismo. A cobertura pós-Bolsonaro tem que trazer as questões da vida e morte das pessoas para o centro do debate.

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