Carta da Editora

De quando eu chorei no trabalho

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De quando eu chorei no trabalho Foto: Cesar Lopes/PMPA

Neutro é sabonete de bebê, já andaram dizendo por aí. Aqui no Matinal tomamos partido em diversas situações. Foi assim na campanha eleitoral, quando declaramos apoio às candidaturas de Lula e de Eduardo Leite. E é assim que nos posicionamos quando estão em jogo direitos fundamentais dos cidadãos. Acreditamos, sobretudo, na transparência com nosso público, que conhece os valores que guiam nosso trabalho. 

Impossível um trabalho ser neutro quando é fruto da observação humana. Já falei sobre isso aqui, sobre como a produção jornalística é resultado de uma série de escolhas. Escolhas carregadas pela subjetividade de repórteres e editores.

Eu, por exemplo, não pago imposto pra chorar. Até propaganda de supermercado me comove. Lendo notícias que seleciono para a newsletter, não raro eu choro. Mas, na frente das minhas fontes, tinha acontecido só uma vez. Até esta semana.

A primeira foi no segundo dia de cobertura da tragédia da Boate Kiss, em 2013. Entrevistava o diretor do Hospital Universitário de Santa Maria, que não parou de trabalhar naquele domingo fatídico. Dormiu poucas horas e, antes de chegar ao hospital naquela manhã, ainda passara em 10 velórios. Foi durante esse relato que a ficha da tragédia foi caindo, e as lágrimas transbordaram. Não aguentei. Acho que a minha ficha também caía depois de engolir o choro ao longo do primeiro dia de cobertura, quando conversei com as famílias que perderam seus filhos.

A segunda vez que chorei na frente de uma fonte foi nesta quarta-feira. Na companhia do professor Luís Augusto Fischer e do jornalista Carlos Caramez, entrevistei a Manuela D’Ávila – uma parceria com a produtora Cubo Play que em breve vocês poderão conferir na revista Parêntese. A ex-deputada acaba de lançar o livro Somos as palavras que usamos. Em 175 páginas, ela reúne conceitos que têm sido gatilhos para brigas nas casas, entre familiares e amigos, e nas redes, entre estranhos. Também indica outras leituras e autores que ajudam a ampliar essas reflexões. Jornalista e pesquisadora, ela tem a esperança de que, melhor informadas e com as palavras certas, as pessoas voltem a dialogar.

Esperança

Vítima de ameaças e ataques sexistas antes mesmo do bolsonarismo surgir, Manuela estuda o tema da desinformação e atua no combate às famigeradas fake news por meio do instituto E se fosse você?. Durante mais de uma hora, falamos, entre outros temas, do mal que uma informação falsa pode causar à vida de uma pessoa e o risco que representa à democracia. Foi na última pergunta, quando a indaguei sobre sua maior esperança em relação ao terceiro governo de Lula, que não pude segurar o choro.

Manuela acredita que o presidente eleito vai atacar com prioridade o problema mais urgente que temos hoje, a fome, assim como ele fez 20 anos atrás. Ela destacou que, apesar de tantos desafios – que vão de recuperar a imagem do Brasil no Exterior a frear o desmatamento das nossas florestas –, é inaceitável existir uma mãe igual a ela (ou a mim, pensei), com uma filha com os mesmos sete anos da filha dela (ou com os 5 anos do meu, ou com a idade dos seus, caras leitoras e leitores), é inaceitável que essa mulher conviva com a incerteza sobre se seu filho vai ter o que comer no dia seguinte.

Enquanto tem gente pedindo “intervenção federal” em frente aos quartéis em Porto Alegre, crianças de 41 escolas municipais recebem pratos reduzidos, sanduíches no lugar de uma refeição completa, por causa da demissão de cozinheiras por uma terceirizada que prestava serviço para a Prefeitura. Contamos essa história nesta semana. Para muitos desses estudantes, a escola é onde eles matam a fome, às vezes é lá que ganham a única refeição do dia. Fazem parte de um quadro em que quase metade dos gaúchos tem alguma dificuldade para se alimentar, e 14% passam fome.

O combate à fome foi menos debatido do que deveria nas campanhas eleitorais, mas foi um compromisso assumido por Lula e deveria ser prioridade de cada prefeito e governador. Encerradas as eleições, é hora de cobrar que ações concretas comecem a ser desenhadas. Nós estamos de olho.

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