Carta da Editora

Sem ônibus, sem escola

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Sem ônibus, sem escola Jéssica Gabriely, moradora da Cruzeiro e estudante do Julinho | Foto: Marcela Donini

Os porto-alegrenses começaram a semana se despedindo da Carris, até então a única empresa pública de transporte da cidade e que já foi considerada a melhor do país. Em entrevista que publicamos hoje, a secretária de Parcerias da prefeitura de Porto Alegre, Ana Pellini, admite frustração em relação ao leilão realizado na segunda-feira.

A venda da estatal faz parte de um pacote de propostas da gestão Melo, que no final de 2021 já tinha conseguido aprovar na Câmara de Vereadores restrições nas isenções da tarifa. Na época, a expectativa era baixar a passagem em R$ 0,20, o que não ocorreu.

No mesmo dia do leilão da Carris, publicamos uma reportagem que mostrou quão prejudicial tem sido a nova política de isenções para estudantes, especialmente os do ensino médio. O fim da meia passagem para todos se soma ao empobrecimento das famílias pós-pandemia e a problemas crônicos apontados na matéria de Gregório Mascarenhas e Sílvia Lisboa, como a concentração de escolas públicas de ensino médio na região central da capital. O resultado é a evasão escolar – ou um calvário diário para não perder aula.

Victor Juan Mendes de Aguiar, 16 anos, caminha por 50 minutos todos os dias para ir à escola porque não tem dinheiro para a passagem. Quando chove muito, não vai. Quer saber o que me indignou mais? Ele tem direito à isenção de 75% na passagem. Fez o pedido em fevereiro e até hoje está esperando retorno da prefeitura.

A redação também cobrou uma resposta do município para o caso de Victor, mas até o fechamento da reportagem não obteve resposta. Cobramos ontem novamente, e nada.

Quantos estudantes estariam na mesma situação de Victor, morador do bairro São José? Ou como Jéssica Gabriely, que chegou a perder o estágio por causa da infrequência escolar, provocada pela dificuldade de pagar as passagens para chegar à escola? O repórter Gregório Mascarenhas também fez um pedido à prefeitura via Lei de Acesso à Informação para saber o tempo médio de resposta a solicitações de isenção na tarifa, mas recebeu como resposta apenas o prazo legal, que é de 12 dias úteis para a solicitação de isenção – lembrando que Victor espera uma resposta desde o verão.


Na esfera estadual, tivemos recentemente a saída de Paulo Burmann da diretoria geral da Secretaria de Educação do RS. Indicado pelo PDT, o ex-reitor da Universidade Federal de Santa Maria justificou a decisão por incompatibilidade com as políticas do governo Leite. Vale ler a íntegra da sua carta de demissão, onde ele elenca diversos problemas na área.

Sem base científica, com dinheiro público

Outra manchete da semana que quero destacar é a liderança do Rio Grande do Sul como o estado que mais realizou atendimentos de constelações familiares pelo SUS, segundo reportagem da Agência Pública. A prática é criticada por se apoiar em conceitos patriarcais e heteronormativos e uma visão determinista. Uma leitora nos questionou, por e-mail, sugerindo que estaríamos generalizando ao dizer que a prática viola direitos humanos e que há bons “profissionais qualificados”. Mas como defender uma atividade que parte de premissas como a superioridade do homem sobre a mulher, e dos adultos sobre as crianças?

Para começo de conversa, isso é inconstitucional, afinal, somos ou não somos iguais perante a lei? Eu não duvido que o método possa proporcionar algum bem-estar a quem procura uma alternativa para problemas de diversas ordens. Mas uma coisa são decisões individuais baseadas em crenças e convicções pessoais – afinal, quando a coisa aperta, a gente acende vela pra tudo que é santo. Agora, virar política de saúde bancada com dinheiro público é outra história.

Aqui em Porto Alegre, aliás, a Câmara Municipal aprovou, no final do ano passado, o Programa de Práticas Integrativas de Educação Popular em Saúde. De autoria do vereador José Freitas (Republicanos), o projeto que virou lei contempla a constelação familiar, além de homeopatia, acupuntura entre outras terapias alternativas, de acordo com diretrizes nacionais. A proposta foi aprovada em votação simbólica, ou seja, nenhum parlamentar se manifestou contra.

Não é só na saúde que a constelação familiar tem feito sucesso. No judiciário, ela vem sendo usada para mediar conflitos em varas de família. Em entrevista ao podcast O Assunto, o pesquisador da UFRGS Mateus França chama a atenção para os riscos de violação de direitos das mulheres e das crianças e a falta de critérios no uso da técnica, que é estimulada pelo Conselho Nacional de Justiça.

França assina uma carta endereçada ao ministro Silvio Almeida junto de outros pesquisadores da área do direito, além de conselheiros do Conselho Federal de Psicologia e do Instituto Questão de Ciência, presidido pela bióloga Natalia Pasternak. O ministro encaminhou ao Conselho Nacional de Direitos Humanos um pedido para debater eventuais abusos do método. A pauta deve seguir em alta.


Marcela Donini é editora-chefe da Matinal.
Contato: [email protected]

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