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O que é fato e o que é incerto sobre a transmissão da Covid-19

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O que é fato e o que é incerto sobre a transmissão da Covid-19

Nos últimos dias, tornou-se popular a discussão sobre o uso de máscaras como proteção contra o coronavírus. Trata-se de uma pauta tão importante quanto complexa. Primeiro, porque há muitas variáveis envolvidas (qual máscara usar, como usar, quando usar?). Segundo, porque a questão das máscaras se insere em um quadro maior de dúvidas a respeito da transmissibilidade do SARS-CoV-2. Os dois tópicos são desafiadores e ainda recheados de lacunas, mas já há muito que pode ser feito por nós.

Máscaras

No início da pandemia, a Organização Mundial da Saúde e demais autoridades sanitárias orientavam que somente indivíduos sintomáticos usassem máscaras. Isso se baseava no procedimento padrão de situações de infecção respiratória, no qual somente o indivíduo com sintomas respiratórios (tosse, espirro) deve usar a máscara. O intuito é proteger os outros.

Já havia, é verdade, a suspeita de que indivíduos assintomáticos pudessem também transmitir a doença. Mas, sobretudo para evitar um consumo em massa e descontrolado de máscaras, a orientação permanecia a mesma.

Porém, à medida que a pandemia atingia números assustadores em solo europeu, vozes contrárias a essa orientação começaram a surgir. Uma das principais foi George Gao, cientista chinês diretamente envolvido com os estudos iniciais da pandemia. Em entrevista à Science, Gao chamou de “um grande erro” a decisão de não usar máscaras mesmo em casos assintomáticos.

A virada ocorreu quando os Estados Unidos decidiram indicar o uso generalizado de máscaras. A recomendação rapidamente ecoou no Brasil, com nosso Ministério da Saúde fazendo a mesma recomendação. Na verdade, muitos cientistas envolvidos com a divulgação de informações precisas e confiáveis sobre a Covid-19 aqui no nosso País já vinham se manifestando sobre a importância das máscaras.

Mas o que podemos saber, de fato, sobre as máscaras caseiras? Devemos notar que não há muitos estudos recentes sobre este tema. Um deles, publicado na Nature, investigou o efeito de máscaras cirúrgicas na transmissão de vírus de infecções respiratórias, como influenza, rinovírus e coronavírus. Conclui-se que elas ajudam na redução da contaminação destes vírus, mas tais dados não necessariamente valem para máscaras caseiras.

De fato, não sabemos qual é o fator de proteção dado por pedaços de pano colocados à frente de boca e nariz. As máscaras respiratórias convencionais começam em 80% de potencial filtrador, e as melhores, como a N95, de uso virtualmente restrito a procedimentos hospitalares, ultrapassam os 90%.

Além disso, devemos levar em conta o fator cultural de uma população não habituada ao uso de máscaras. Usar uma máscara envolve medidas de higiene permanentes, como não levar a mão não higienizada para ajustar a máscara, e evitar longos períodos de uso contínuo da máscara, pois a umidade acumulada pode prejudicar sua já tênue capacidade de filtração.

Por outro lado, a própria orientação da OMS contra o uso de máscaras é problemática. Uma análise do British Medical Journal esmiuçou as diretrizes do órgão e conclui que a orientação é inconsistente. Os autores observam que o intuito da OMS seria, na verdade, deixar claro que o uso de máscara como medida única é, de fato, desaconselhado. Se tomado em conjunto com outras medidas preventivas, como isolamento social e lavagem constante das mãos, o uso de máscaras complementa a melhor conduta a ser tomada. Conquanto não haja dados empíricos e quantitativos sobre a redução da transmissibilidade do vírus por meio do uso de máscaras caseiras, parece bastante razoável que o uso de máscaras pode ser útil, sobretudo para proteger o outro, desde que todas as demais recomendações sejam mantidas.

Seja como for, devemos observar que, em documento publicado no dia 6 de abril, a OMS manteve a posição de não orientar o uso de máscaras pela população sem sintomas respiratórios. A autoridade reforçou o entendimento, compartilhado por muitos cientistas, de que as principais medidas preventivas são o isolamento social e hábitos de higiene.

O papel do ar na Covid-19

Por trás de todo o debate sobre o uso de máscaras está a fundamental questão da transmissibilidade do SARS-Cov-2 através do ar. Por conhecimento do comportamento de outros vírus de infecções respiratórias, desde muito cedo nesta pandemia se sabe que o atual coronavírus é transmissível através de espirros e tosse de  pessoas infectadas. Mas a questão é mais complexa.

Os livros clássicos estipulam que há duas formas básicas pelas quais um indivíduo pode expelir microorganismos pelas vias aéreas: ou em forma de gotículas (maiores que 5 micrômetros, geralmente emitidas quando tossimos ou espirramos) ou em forma de aerossol (menor que 5 micrômetros, geralmente emitidas quando falamos ou mesmo respiramos). Uma importante diferença entre elas é que uma gotícula, por ser pesada, cai antes de evaporar, ao passo que o aerossol, por ser mais leve, pode evaporar antes de atingir o solo, permitindo que eventuais vírus ou bactérias nele contidos permaneçam flutuando no ar.

Há fortes indícios de que o SARS-CoV-2 não seja transmitido na forma de aerossóis, e esta tem sido a postura predominante das autoridades sanitárias. Esta foi, inclusive, uma das notícias alvissareiras sobre a pandemia, quando a OMS divulgou que o novo coronavírus não é airborne (isto é, não é transmitido através do ar na forma de aerossóis).

Tais indícios são fortes, mas não definitivos. Os estudos feitos até agora sobre o assunto indicam que o SARS-CoV-2 poderia, sim, permanecer disponível no ar. Um destes estudos, por exemplo, procurou e encontrou sinais do vírus no ar ambiente de um quarto ocupado por um paciente da Covid-19, inclusive em locais onde somente os aerossóis teriam chegado. Isso nos levaria a aceitar que, sim, o vírus é airborne, ou carregado pelo ar.

Porém, como analisam muito bem recentes artigos publicados na The Atlantic e na Wired, a questão da transmissibilidade pelo ar é mais complexa. Em primeiro lugar, quando dizemos que “encontramos” o vírus no ar, dizemos que encontramos traços de seu RNA no ar, e isto não significa que o vírus ainda estivesse viável (isto é, capaz de provocar a doença). Em segundo lugar, não sabemos qual é a carga viral necessária para se provocar a doença, e pode ocorrer que os vírus encontrados no ar sejam insuficientes, mesmo quando viáveis. Em terceiro lugar, há uma variável de tempo de exposição: cruzar rapidamente na rua por uma pessoa contaminada é diferente de compartilhar um elevador com a mesma durante 60 segundos.

Tudo isso, porém, são questões em aberto e que dificilmente serão respondidas no curto prazo, de modo que precisamos tomar decisões com base em probabilidades. Se assumirmos que há chance de o vírus ser transportado pelo ar na forma de aerossóis, isso indica que o ato de falar e respirar é um possível fator de risco para transmissão.

Isso torna o uso de máscaras, mesmo as caseiras, uma prática construtiva, uma vez que, tal como as máscaras hospitalares simples, elas reduzem a chance de que nós, os usuários, contaminemos as pessoas do nosso entorno. (Vale lembrar que as máscaras que fazem também o inverso, isto é, protegem o usuário do entorno, tal como a N95, devem ser integralmente destinadas aos hospitais.)

Todavia, estas são questões em aberto, com cuja incerteza teremos que lidar, potencialmente durante um largo período. Isso não significa que cientistas e jornalistas estejam confusos ou comunicando informações necessariamente erradas. Algumas certezas simplesmente ainda não estão disponíveis.


*Felipe é jornalista e estudante de Medicina na UFRGS. Você pode contatá-lo pelo [email protected]

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