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Patofisiologia na Covid-19: como ocorre a infecção e como o corpo reage

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Patofisiologia na Covid-19: como ocorre a infecção e como o corpo reage

Um dos conceitos básicos dos estudos nas ciências da saúde é patofisiologia, isto é: de que maneira uma doença (pato) afeta o funcionamento ideal do organismo (fisiologia). Entender a maneira como uma doença se instala e se manifesta – processo complexo, que envolve muitos elementos e etapas – é uma das melhores formas de procurar soluções para ela.
Com base nisso, vamos explorar, neste texto, os aspectos que parecem mais essenciais do que se sabe, até agora, sobre como o novo coronavírus ataca o corpo, e sobre como nosso corpo reage a ele. Isso ajuda a compreender de forma mais concreta a pandemia e de que forma os tratamentos até agora propostos poderiam funcionar (ou falhar). Vale ressaltar que vamos abordar o que acontece nos casos mais complicados da doença, afinal muitas pessoas infectadas apresentam sintomas leves ou mesmo permanecem assintomáticas.

O SARS-CoV-2 infecta, principalmente, células estratégicas do pulmão

A principal rota de contágio do novo coronavírus são as mucosas em contato com o meio externo. São camadas de tecidos presentes em olhos, nariz e boca com um grau de proteção baixo, pois suas células são muito permeáveis (têm funções de troca e de absorção). De modo importante, o vírus também pode ser simplesmente inspirado, indo diretamente aos pulmões.
Uma vez dentro do corpo, o SARS-CoV-2 necessita invadir células para se replicar. Entende-se que isso se dá através da ECA2, uma molécula existente na membrana de algumas células do corpo humano. Isso ocorre pois há compatibilidade entre uma estrutura externa do vírus (chamada proteína S) e a ECA2.
(Observação: a ECA2 é a sigla para a enzima conversora de angiotensina 2, uma proteína vital no nosso organismo. Ela é especialmente importante no contexto da Covid-19 pois indivíduos com algumas condições crônicas ou idade avançada tendem a ter células com maior expressão da ECA2, aumentando a chance de infecção pelo vírus. Nós iremos falar mais dela nas próximas semanas, mas, se você tem interesse sobre a ECA2, uma visita no verbete em inglês da Wikipedia acompanhada de uma boa taça de café já é bastante enriquecedora.)
A ECA2 está presente em diversas células de diferentes órgãos. Porém, como explica o professor Camilo de Lellis Santos neste vídeo, a ECA2 é principalmente expressa nos pneumócitos tipo 2. Os pneumócitos tipo 2 são células de suporte e relativamente pouco numerosas quando comparadas aos pneumócitos tipo 1, que são as células pulmonares, abundantes nos alvéolos, que, por sua vez, realizam as trocas gasosas.
Embora a “respiração” propriamente dita seja trabalho dos pneumócitos tipo 1, os pneumócitos tipo 2 são essenciais para o bom funcionamento dos pulmões. Entre outras tarefas, eles liberam uma substância (denominada surfactante) que reduz a tensão superficial da água, presente nas paredes dos alvéolos, permitindo que o oxigênio entre no sangue (e que o gás carbônico saia).

Quando invade o pneumócito 2, o SARS-CoV-2 inicia uma cascata de eventos

Uma vez dentro dos pneumócitos, o vírus usa a maquinaria celular ali disponível para se multiplicar. Isso ocorre através de processos de tradução e transcrição de seus genes e proteínas, processos que o vírus, por ser uma estrutura essencialmente simples, não consegue executar fora de uma célula viva. É nesse momento que alguns antivirais, como o remdesivir, funcionariam.

Ao se multiplicar, o SARS-CoV-2 acaba por destruir os pneumócitos infectados, liberando milhares de novas cópias de si próprio para o ambiente externo. Dispersas nos alvéolos, essas novas cópias podem encontrar e invadir outros pneumócitos. Despejadas na corrente sanguínea, podem atingir células de outros órgãos do corpo que também expressem a ECA2. Um exemplo entre tantos possíveis é o ataque a células do coração.
As consequências da multiplicação geométrica do vírus no pulmão são inúmeras. Inicialmente há a perda de pneumócitos, o que por si só já prejudica as trocas gasosas. Mas a agressão viral contra os pneumócitos também libera detritos celulares, que desencadeiam reações de defesa do corpo. Entre os tantos efeitos desse processo está a alteração da permeabilidade dos capilares sanguíneos locais, gerando acúmulo de líquidos no pulmão.
Tudo isso contribui para um prejuízo da função pulmonar, que tem a falta de ar como uma de suas principais manifestações. O prejuízo das trocas gasosas do pulmão, por sua vez, tem como consequência a redução dos níveis de oxigênio do sangue (fenômeno denominado hipoxemia), o que gradualmente leva ao prejuízo do metabolismo dos outros órgãos e sistemas do corpo.

O corpo reage tentando resolver o problema, mas pode acabar por piorá-lo

Desde o início da infecção, o corpo tenta atacar o microrganismo invasor. O primeiro ataque aos pneumócitos e a primeira proliferação de réplicas virais já dão início à resposta imune, isto é: a detecção de um invasor recruta células de defesa (principalmente macrófagos e eosinófilos), que migram para o local da infecção e para aniquilar os corpos estranhos.
Ocorre que essa resposta imune não é muito delicada. Ela envolve um arsenal de mecanismos de ataque ao organismo invasor que acabam por prejudicar também o próprio organismo sadio. Uma parte deste arsenal é composto por um grupo heterogêneo de substâncias químicas, denominadas citocinas. Elas estimulam a resolução de uma infecção que ameaça o corpo como um todo, e parte das consequências desta orquestra de ações é a febre.
É neste ponto que começam a surgir dúvidas importantes na patofisiologia da Covid-19. Uma hipótese é a do fenômeno conhecido como a tempestade de citocinas, que ocorre quando a resposta imune gera uma quantidade descomunal e desequilibrada destas substâncias. A tempestade pode ocorrer em outras situações de infecções generalizadas (sepses), e ela poderia explicar os quadros graves de Covid-19. Esta hipótese carrega consigo algumas possibilidades terapêuticas, como imunobiológicos que tentam domar a tempestade.

Controlar uma resposta imunológica excessiva, vale lembrar, também é o que motiva o estudo da hidroxicloroquina como tratamento para a Covid-19. Este remédio, usado inicialmente em pacientes com malária, atua na supressão de alguns eixos da resposta imune. Porém, seu mecanismo de ação ainda não é satisfatoriamente compreendido e o repertório de efeitos adversos é vasto, de modo que seu uso segue restrito a casos muito graves de Covid-19.

O papel da resposta imune adaptativa

Tudo que falamos até agora sobre reação do corpo ao vírus diz respeito ao sistema imune inato. Ele é nossa primeira linha de defesa contra organismos invasores e atua de modo muito rápido e padronizado. De fato, a grande maioria das infecções que temos ao longo da vida são resolvidas por ele.

Porém, para os casos em que o sistema imune inato não é suficiente, entra em cena a imunidade adaptativa. Esta porção do sistema imune dispõe de elementos próprios (principalmente linfócitos e anticorpos) que são produzidos especificamente para lidar com um determinado organismo invasor. Diferentemente da imunidade inata, que é sempre a mesma, a imunidade adaptativa vai sendo construída ao longo da vida, gerando nossa memória imunológica.
A imunidade adaptativa na Covid-19 ainda é um tema bastante disputado, e provavelmente seguirá assim até que consigamos desenvolver vacinas contra o SARS-CoV-2. Nós iremos abordar este assunto nas próximas semanas, mas gostaríamos de mencionar uma hipótese recente segundo a qual o novo coronavírus poderia invadir justamente as células do sistema de defesa adaptativo.


*Felipe é jornalista e estudante de Medicina na UFRGS. Você pode contatá-lo pelo [email protected]

Leia os artigos anteriores:

O que é fato e o que é incerto sobre a transmissão da Covid-19

Em busca do tratamento da Covid-19

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