Reportagem

“A bíblia do conselheiro tutelar é o ECA, não a Bíblia Sagrada”, diz ex-secretária de governo

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“A bíblia do conselheiro tutelar é o ECA, não a Bíblia Sagrada”, diz ex-secretária de governo Carmen Oliveira foi secretária nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente nas primeiras gestões de Lula | Foto: Igor Sperotto

Carmen Oliveira esteve à frente da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente nas gestões Lula e comenta a preocupação de movimentos progressistas com o avanço de conservadores nos conselhos. Eleições ocorrem neste domingo em todo o país

Neste domingo, municípios do Brasil inteiro vão às urnas. Desta vez, para escolher os novos conselheiros tutelares. Em Porto Alegre, serão eleitos 50 nomes para as 10 microrregiões da cidade (veja onde votar). 

Para falar sobre questões importantes que estão em jogo nestas eleições, conversamos com Carmen Oliveira, ex-secretária nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. A psicóloga alerta para um possível retrocesso na universalização dos direitos da criança e do adolescente desde o Estatuto da Criança e do Adolescente, criado em 1990. 

O risco, na sua visão, se deve a candidatos conservadores ligados a igrejas ou a partidos políticos, e é ilustrado por casos como o reportado pela agência Pública. Em uma cidade do interior do Pará, o conselho tutelar tentou impedir o aborto legal de uma adolescente vítima de violência sexual. Uma das conselheiras que assinava o pedido para reverter a interrupção da gravidez, enviado ao Ministério Público, é uma cantora evangélica.

O avanço de conservadores nos conselhos tutelares é observado já há mais de 20 anos por Oliveira, e se acelerou com a ascensão do bolsonarismo. O fenômeno tem mobilizado entidades progressistas em busca do engajamento da população no pleito deste ano. Historicamente, as eleições para conselheiros tutelares, que não são obrigatórias, não costumam ter adesão da população. Na capital gaúcha, em 2019, 43.754 foram às urnas para escolher os novos conselheiros – apenas 6% do total de eleitores que votaram no primeiro turno das eleições para prefeito no ano seguinte.

A seguir, confira os principais trechos da entrevista com Carmen Oliveira, que já trabalhou para órgãos como a Unicef e a Organização Internacional do Trabalho. Oliveira também foi professora na Unisinos durante 30 anos e assessora da direção do Grupo Hospitalar Conceição até o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. Atualmente, é pesquisadora associada do Laboratório de Artes e Micropolíticas Urbanas, da Universidade Federal do Ceará.

Matinal – Não é de hoje que os cargos de conselheiros vêm sendo disputados por grupos conservadores. Desde quando a senhora observa esse movimento?

Carmen Oliveira – Eu participei da gestão nacional da política de direitos da criança e do adolescente de 2006 a 2013. Naquele período, já se observava esse fenômeno. Era comum que em seminários nacionais houvesse um número expressivo de conselheiros com algum vínculo com igrejas, não só católicas mas evangélicas também. Me chamava a atenção que, antes de algumas mesas, era comum ver boa parte dos conselheiros já no local do evento em atividade de oração.

Antes disso, já se percebia uma certa partidarização dos conselhos tutelares, de pessoas tomando a função quase como trampolim político. Faz parte da dinâmica democrática quando alguém tem atuação destacada em qualquer área e acaba tendo visibilidade. É um movimento legítimo que uma liderança comunitária cogite função pública, o que não pode é inverter o caminho e se candidatar a conselheiro já como manobra política.

No caso das igrejas, coloca-se em questão o exercício das funções dos conselheiros. Temos uma máxima de que a “bíblia”, entre aspas, para o conselheiro tutelar é o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e não a Bíblia Sagrada. As situações têm que ser interpretadas à luz desse marco legal, e não de uma valoração ideológica ou religiosa.

Nós, defensores dos direitos da criança e adolescente, fizemos um esforço hercúleo para chegar a esse patamar de hoje, que é a universalização dessa estrutura. Dados recentes dão conta de que o Brasil tem 6.100 conselhos tutelares num total de 30.500 conselheiros em 5.070 municípios. É uma estrutura de proteção dos direitos impensável antes do ECA.

O Brasil foi pioneiro na criação desta função. Quando, em eventos internacionais, eu mencionava essa figura, as pessoas ficavam muito impactadas e nem entendiam do que estávamos falando. Um agente de proteção, um defensor comunitário que independe da administração pública e do poder judiciário.

Além disso, essa característica de ser escolhido por voto direto, e pela primeira vez em todo o Brasil com as mesmas urnas eletrônicas usadas nas eleições gerais (Porto Alegre já usou em anos anteriores), faz com que a gente tenha um desejo muito grande de que seja uma função bem ocupada. Outro ineditismo é a ocorrência das eleições assegurada por uma legislação específica, que prevê inscrições e formação prévias. Não é escolha do município fazer ou não.

Matinal – Que efeitos a predominância de pessoas conservadoras nos conselhos pode ter para a proteção da infância?

Carmen Oliveira – Significa uma atuação muito mais próxima aos antigos “comissários de menores”, com foco em fiscalização de bares, retirada de crianças na rua, além de ideias bem estigmatizadas em relação a perfis como os de usuários de drogas ou de quem não tem uma sexualidade binária. O próprio tema da educação sexual nas escolas, há restrições em relação a isso. São atitudes mais conservadoras que hoje nem se trata de política de costumes, mas de implementar legislações que já existem. 

Matinal – A senhora se refere ao crime de homofobia, por exemplo?

Carmen Oliveira – Sim, e em relação ao trabalho infantil. Ainda existe uma glorificação do trabalho infantil. Enfim, representa muitos retrocessos. Especialmente neste cenário de emergências climáticas, é importante que esses agentes estejam muito próximos da vida comunitária para fazer a devida fiscalização dos serviços públicos.

Matinal – Como a senhora avalia a formação dos conselheiros?

Carmen Oliveira – O processo tem uma falha que não é só da administração pública, mas também dos próprios espaços de deliberação e acompanhamento. Os conselhos municipais têm função muito importante não só nesse momento pontual da eleição. Poucos municípios preveem formação continuada financiada pelo fundo municipal da área. Nos dois primeiros mandatos do presidente Lula, instituímos uma rede de Escolas de Conselhos. Ou seja, tinha uma política de financiamento aos estados e capitais para que houvesse escolas não só para os conselheiros municipais, mas para os conselhos tutelares, atualizando e perfilando um pouco segundo as especificidades regionais. 

Havia uma base curricular programática para os conselheiros tutelares, com temas como a própria organização do sistema de garantia de direitos, o entendimento de que se trata de uma política intersetorial, que se deve reportar aos conselhos municipais de saúde e educação, por exemplo, fazer demandas. Também sobre a relação da administração pública com o sistema de justiça, as funções do Ministério Público e do juizado, além de violações mais recorrentes, como violência sexual, trabalho infantil e violência letal, considerando o alto índice de mortes violentas de crianças e adolescentes no Brasil.

Matinal – Falando na importância dos conselhos municipais, a gestão de Sebastião Melo, em Porto Alegre, vem enfraquecendo esses colegiados, extinguindo o poder deliberativo de alguns. Como isso enfraquece o conselho tutelar?

Carmen Oliveira – Se uma das funções desses conselhos é, por exemplo, acompanhar e incidir sobre a proposta orçamentária, se o conselho é esvaziado da sua função deliberativa e fiscalizadora, ficando um órgão apenas consultivo, temos um problema de base. Consequentemente, se esvaziam as atribuições dos conselhos tutelares, que podem assessorar os poderes na elaboração da proposta orçamentária, municiando essas instâncias com dados de atendimento, para se saber exatamente o que está pegando na ponta, onde e em que grau não estão atendendo às necessidades das crianças e das famílias. 

Matinal – Quais os maiores desafios da função no Brasil, e em especial em Porto Alegre, se há aqui alguma peculiaridade?

Carmen Oliveira – Os conselhos tutelares estão razoavelmente preparados e atuando naquilo que chamamos de proteção coletiva da universalização dos direitos a crianças e adolescentes. Mas há falhas na atuação preventiva e de mobilização, como criar, nas comunidades, um ambiente mais favorável de participação, seja em veículos de comunicação comunitários ou eventos públicos, não apenas naqueles promovidos pelos próprios atores do sistema, mas pela comunidade mesmo, além de participar de coletivos sociais. Falta uma escuta mais sensível sobre as necessidades da região, do que está faltando, e não apenas atender as demandas de quem chega ao conselho tutelar.

Tem também uma falha muito grande na gestão da informação. Uma das funções do conselho tutelar é a fiscalização dos serviços de atendimento, mas muitas vezes não existe nem cadastro das entidades que prestam esses serviços, como abrigos e a rede de atenção psicossocial. É preciso conhecer os planos setoriais, tem muito conselheiro que nunca leu o plano municipal de saúde, ou de educação, nem tem acesso aos bancos de dados daquelas políticas setoriais, como número de matrículas ou evasão.

A gestão pública tem que administrar com a força dos fatos, sem conhecimento da realidade não se pode construir políticas públicas efetivas. Há ainda falhas no registro do trabalho dos conselheiros tutelares. Trabalha-se um pouco no escuro. Recentemente, fiz um trabalho de consultoria para a Unisinos sobre a rede municipal de São Leopoldo, e descobrimos que os conselheiros não fazem uso do SIPIA, Sistema de Informação para a Infância e Adolescência. No seu lugar, registram em caderninhos. Ou seja, não tem como levantar um relatório das suas atividades. 

Matinal – Alguns conselheiros com quem conversamos informalmente falam de adoecimento desses profissionais frente a tantos desafios, como o déficit de vagas em creches, no caso específico de Porto Alegre. A senhora tem conhecimento de algum fenômeno nacional nesse sentido?

Carmen Oliveira – Não saberia dizer, mas imagino que esteja ficando mais agudizado pela precarização da rede pública dos últimos anos, em função desse austericídio quanto ao orçamento. A “PEC da Morte”, que fez o congelamento de gastos por 20 anos (a PEC do Teto, Proposta de Emenda à Constituição 55/2016, foi aprovada no governo Temer, em 2016), impactou diretamente na oferta e na qualidade dos serviços, além da eleição de governantes pouco afinados com a reversão de desigualdades sociais, que não consideram esses gastos como investimentos necessários para reduzir a vergonha de notícias como a dos 120 mil novos milionários no Brasil. Isso depois da pandemia e considerando toda catástrofe sofrida pelas populações periféricas por conta do descaso do governo Bolsonaro.

De outro lado, temos um colapso climático em curso. Como dizia o psicanalista argentino Pichon Rivière, às vezes os sintomas não estão latentes, estão latindo. E é isso que estamos observando. O esgotamento planetário vai requerer da gestão pública respostas mais eficazes do que apenas sistemas de alerta, como está propondo o governo do Rio Grande do Sul. É preciso reverter as causas que provocam essas situações. Estamos literalmente apagando incêndio.

Matinal – Considerando todos esses desafios, como a senhora definiria o perfil ideal de um conselheiro tutelar? 

Carmen Oliveira – O requisito básico, já que vai ser escolhido pela região, é que conheça a realidade desse território. Não só conhecimento, mas implicação, como se diz na psicanálise, que seja presente, tenha sensibilidade. Não uma liderança que se autoinventa ou seja inventada por alguém, um pastor ou vereador, mas que seja efetivamente reconhecido na comunidade como um defensor de direitos relacionados a essa faixa etária. Tem que ter habilidade de articulação com os outros órgãos do sistema de garantia de direitos, poder de mobilização comunitária, capacidade de trabalhar em equipe. Tem que saber se comunicar, inclusive por escrito, para produzir relatórios, informar autoridades. Não é pouco.

Por último, que seja capaz de oferecer uma escuta sensível nos atendimentos. O conselheiro tutelar não é um despachante, um SAC, um serviço de informações. Por isso, damos um peso maior não só a esse processo de escolha, mas à capacitação prévia e formação continuada, que são fundamentais.


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