Reportagem

Educação sexual pode ser feita desde bebê, diz psicóloga sobre proteção contra abusos

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Educação sexual pode ser feita desde bebê, diz psicóloga sobre proteção contra abusos Cátula divulga conteúdos no Instagram para auxiliar famílias | Foto: Marcelo Parizzi/Divulgação

Cátula Pelisoli faz recomendações para famílias e escolas estarem alertas ao comportamento das crianças dentro e fora das redes sociais

Um abuso na infância pode gerar traumas para a vida toda. Os relatos publicados em reportagem da Matinal desta semana mostram os impactos desses delitos, cometidos principalmente contra crianças do sexo feminino.

Enquanto o caminho da denúncia é difícil por uma série de questões – de constrangimento a medo –, a prevenção é uma estratégia que precisa ser abraçada por todos: famílias, escolas e a sociedade em geral.

Nesta entrevista, Cátula Pelisoli, doutora em psicologia e analista judiciária, fala sobre como proteger nossas crianças e identificar sinais de que possam estar sofrendo alguma violência – com o cuidado de ressaltar que não existem sintomas exclusivos do abuso sexual. “Mudanças de comportamento acendem um alerta, mas não se pode tirar conclusões precipitadas. A avaliação não é assim tão simples”, explica.

Pelisoli também é produtora de conteúdo no Canal Proteja, que disponibiliza gratuitamente no seu site uma cartilha de proteção para crianças e adolescentes. 

A seguir, leia a entrevista com a psicóloga.

Matinal – Quais os sinais de que uma criança pode estar sendo vítima de abuso sexual?

Cátula Pelisoli – A criança pode apresentar vários indicadores nas áreas cognitiva, comportamental ou afetiva. Mas não há nenhum sintoma exclusivo, nenhum sinal inquestionável. A gente não pode identificar esses sinais e já entender que é abuso sexual. Mas ela pode, principalmente, mudar o comportamento, é o que mais nos indica que uma violência está acontecendo.

Se na escola, por exemplo, ela era mais extrovertida e passa a ser mais fechada, ou passa a ter um desempenho mais pobre. Em casa, a criança pode começar a ser agressiva, deixar de ser mais sociável e ficar mais no quarto, mais fechada, ou deixar de brincar ou fazer as atividades que gosta.

Outro sinal mais associado ao abuso sexual é o comportamento hiperssexualizado. A criança pode apresentar masturbação, um vocabulário que não é apropriado para idade dela, condutas hipersexualizadas com os coleguinhas ou até mesmo com adultos. Lembrando que existem etapas do desenvolvimento onde a masturbação infantil pode acontecer e faz parte do desenvolvimento normal e não está associada ao abuso sexual.

Matinal – Como é o melhor jeito de abordar o assunto com as crianças e adolescentes? Quais as diferenças entre as faixas etárias no tipo de abordagem e conteúdo?

Cátula Pelisoli – O jeito certo é através da educação sexual, educação para autoproteção. Isso pode e deve acontecer desde bebezinho, com recursos como histórias que podem ser contadas na linguagem dela e que falem sobre as partes íntimas, os toques adequados e não adequados, toque bom e toque mau, os toques que vão receber de limpeza e higiene apenas de pessoas é de confiança, dos seus cuidadores.

Quando a criança é maiorzinha, a gente explica que não é bom que ela tenha segredo com ninguém, que ela precisa contar para a mãe ou o pai coisas importantes na vida dela. Estabelecer um relacionamento de confiança e abertura para comunicação é muito importante para que a criança imediatamente revele. Pelo menos é mais provável ela falar do que com uma família mais fechada, sem abertura para ouvir.

Com os adolescentes, é importante poder ouvir as dúvidas, esclarecer e aproveitar oportunidades quando surge uma situação, quando algo é falado na novela ou outro programa de televisão que a família esteja assistindo, por exemplo. Aproveitar para dar orientações adequadas, não deixar passar, não esperar que os adolescentes procurem ou perguntem.

Matinal – Qual o papel da escola na prevenção?

Cátula Pelisoli – O papel da escola é fundamental porque ela pode identificar esses sinais sobre os quais a gente estava conversando antes e notificar a família. A escola vê a criança todos os dias, consegue acompanhar processos de mudança, ter um entendimento de quem é aquela criança e como ela mudou. E também ali se estabelecem relações de confiança que, muitas vezes, fazem as crianças revelar a violência que sofrem para professores.

Além disso, atividades mais diretivas, de orientação e prevenção mesmo, são fundamentais. É obrigação da escola proporcionar essas atividades, que incentivam a revelação. Temos que ultrapassar essas ideias inadequadas sobre a educação sexual, entender que ela é uma orientação necessária e preventiva e aplicar isso nas escolas sem receios, sem preconceito. Porque isso tem dificultado a implantação efetiva da educação sexual nas escolas. 

Matinal – Que alternativas temos de proteção que não seja colocar a responsabilidade nas famílias e nas próprias crianças e adolescentes pela sua autoproteção?

Cátula Pelisoli – Eu adorei a tua pergunta. A gente tem que orientar as famílias e as crianças, mas elas, as crianças, não têm responsabilidade sobre isso. Isso é importante para que elas saibam identificar alguma situação e tenham mais chances de revelar de maneira mais rápida, ou até mesmo se proteger. Pesquisas nos indicam que as crianças que recebem educação sexual conseguem revelar e identificar as situações de abuso mais rapidamente. Só que não é responsabilidade dela, é nossa enquanto sociedade.

Por aí passam questões sociais, culturais e políticas, a cultura do estupro, o machismo, a sociedade patriarcal. Questões que interferem em ver a criança como objeto, um objeto para saciar o prazer de alguém, que se pode violentar fisicamente. A nossa sociedade ainda vê a criança como alguém inferior. Como ela não tem o mesmo grau de conhecimento, as relações que se estabelecem são desiguais. Essa desigualdade, às vezes, promove o cuidado – quer dizer, eu cuido porque eu sou o adulto responsável. Mas também promove o abuso. A criança não é identificada como um sujeito, e as meninas em especial. A nossa sociedade desvaloriza o sexo feminino.

A legislação vem mudando, trazendo mais igualdade para as mulheres, mas são ainda muito recentes em termos históricos, e nossa sociedade ainda não se apropriou desses valores.

Matinal – Quais os traumas mais frequentes na vida de uma pessoa que foi vítima de abusos na infância? 

Cátula Pelisoli – O transtorno de estresse pós-traumático é bastante associado aos abusos sexuais na infância, além de outras psicopatologias. As pessoas têm mais depressão, mais ansiedade, transtornos alimentares, podem ter transtornos de personalidade. Mas o mais prevalente é o estresse pós-traumático, que é um transtorno que depende de um evento como gatilho.

Essa pessoa evita falar, pensar ou se deparar com questões que lembrem ou estejam associadas àquele evento traumático. E tem sintomas ligados à ansiedade, como taquicardia,  tontura, respiração ofegante, desmaio. Além de cognições negativas, como pensar “Ah, eu não valho nada, não sirvo para nada. Isso me aconteceu porque eu merecia”. Ela pensa de forma negativa sobre a vida, sobre ela, sobre os outros e acha que as pessoas não são confiáveis. O sintoma mais frequente são as lembranças ou pensamentos invasivos ou até pesadelos. Às vezes não é exatamente sobre aquela situação que viveu, mas a emoção é a mesma, aquele medo de que algo ruim está acontecendo. Então ela vive num estado de apreensão tanto porque se sente como se estivesse acontecendo ou pensa que isso pode acontecer de novo a qualquer momento.

Matinal – A exposição de menores nas redes sociais pode aumentar o risco de abusos?

Cátula Pelisoli – Sim. É mais comum do que a gente pensa as pessoas usarem essas imagens. Existe uma grande rede de pedofilia que a gente não consegue nem mensurar e que usa e distorce, manipula, edita imagens de crianças. Não só na tal da deep web, mas também na nossa internet de fácil acesso. 

Outro risco é o de sujeitos se aproximarem da criança. Pode até ser um conhecido que usa a rede social para construir ali uma relação que vá possibilitar, mais para frente, o abuso.

Fora isso, tem uma super exposição das crianças em situações inadequadas. Um seguidor nos mostrou um canal do YouTube com meninas de biquíni o tempo todo, e tinha várias visualizações. O que a família queria com aquilo? Os responsáveis, que na verdade estavam sendo bem irresponsáveis, estavam expondo as meninas possivelmente com um propósito de alcançar fama, tornar as crianças mini influencers. Quando crescerem, podem se envergonhar. Elas não têm condições de entender o impacto daquilo na vida delas. Não têm a dimensão que a gente tem, e mesmo a gente se assusta com a dimensão que as coisas tomam na internet. Já há jurisprudência que nos mostra que as crianças vão poder, ao crescerem, processar os seus pais se entenderem que elas foram submetidas de certa maneira. Ninguém disse que não era para fazer. Os pais acabam permitindo essa exposição.

Matinal – Que orientações você dá a pais e mães para proteger seus filhos em ambientes virtuais?

Cátula Pelisoli – Os pais têm que monitorar, usar as ferramentas de controle parental.  Muitos dizem “ah, se eu uso o controle parental, a criança não consegue entrar em nada, tudo bloqueado”. Bom, é bloqueado o que não é para ela. Tem jogos com interação que possibilitam a aproximação de um agressor. Não é estar 100% ali do lado da criança, mas é regularmente cuidar disso, saber o que ela faz, com quem e o que ela fala. 

E jamais ter rede social na infância. Tem crianças que gravam e publicam o que elas acham que tá ok, e não tá ok. Se os pais não assumirem essa responsabilidade, não conseguirem dar esse limite, devem procurar ajuda. Faz parte do desenvolvimento da criança querer o que está no nosso entorno. Hoje elas podem querer publicar vídeos, ser youtubers. O que elas estão fazendo com isso, de que forma, por quê? Os pais precisam refletir sobre isso e dar limites.


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