Reportagem

Após apontar distribuição de marmitas como “problema”, Prefeitura quer mapear projetos de doação

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Após apontar distribuição de marmitas como “problema”, Prefeitura quer mapear projetos de doação Ação do grupo PF das Ruas, que distribui comidas no Centro de Porto Alegre | Foto: André dos Anjos / Divulgação

Secretário de Porto Alegre garante estar aberto ao diálogo por trabalho em conjunto com grupos, mas voluntários veem pouca ação ativa de colaboração do Executivo; ONGs estimam que população nas ruas esteja subestimada

*Colaborou Fernanda Grabauska

Dias após falar em evento da Prefeitura que a distribuição de quentinhas nas ruas de Porto Alegre “constitui parte do problema, não da solução”, o secretário municipal de Desenvolvimento Social, Léo Voigt, explicou ao Matinal que a ideia é construir “alguma forma de parceria” com esses grupos voluntários. 

Voigt negou haver planos para proibir a distribuição das marmitas a pessoas em situação de rua, mas admitiu que o poder público gostaria de contar com algum tipo de regulamentação da ação de ONGs e grupos que distribuem refeições nas ruas de Porto Alegre. Representantes de ONGs ouvidos pela reportagem afirmam não ver interesse concreto do governo Melo nessa interlocução..

De acordo com Voigt, como há mais de 30 grupos realizando o trabalho, seria necessário “um mínimo de articulação” junto ao Executivo. “Como tem escala, presença e territórios mais incidentes de população de rua, ela (a distribuição) tem impacto. Então ela requer que se abra diálogo e se construa junto uma estratégia de definição”, afirmou ele, citando que, dentre as questões, há áreas mais atendidas e outras, não. Um mapeamento oficial dessas ações deve ser feito ainda neste ano – por ora, não se sabe no Paço o número exato de entidades que distribuem comida gratuitamente nas ruas da Capital.  

O que incomoda a Prefeitura, segundo relato do secretário, é que pessoas se movimentam dentro da cidade em busca das marmitas, algo que, conforme ele, atrapalha ações do município para o atendimento. “Isso exige uma combinação ou um serviço posterior que dê acompanhamento à população que ali se alimenta.” Para Voigt, é necessário mais diálogo para acertar os ponteiros tanto na relação entre Executivo e voluntários, quanto na que ocorre entre os próprios grupos.

Misturaí optou por concentrar distribuição de comida em sede

Presidente da ONG Misturaí, Mara Nunes, conhecida como Tia Mara, vê pouca interlocução do Executivo com as ações voluntárias. De acordo com ela, hoje há estabelecida uma parceria de cessão de um espaço para a organização, mas ela foi construída a partir de contato com a antiga gestão da Secretaria Municipal da Cultura, não envolvendo produção de alimentos. Neste local, a ONG oferece aulas de reforço para crianças, além de classes de música e inglês.

Quanto à alimentação da população carente, Tia Maria contou que a ONG tem sua articulação junto à Prefeitura, mas nada formalizado. Conforme ela, já houve procura por parte da Misturaí, mas não chegou resposta por parte do Município.

Atualmente, a ONG entrega diariamente, de segunda a sexta, kits de café da manhã, da tarde e marmitas à noite. A doação é concentrada na sede, localizada na Vila Planetário. E nesse serviço está presente a questão da territorialização citada pela secretaria: “Ninguém leva nada sem ter o cadastro, RG, CPF, endereço ou algum tipo comprovante”, garantiu Mara, que destacou que o Misturaí também entrega cestas básicas uma vez por mês a famílias com aluguel social. O público atendido é basicamente o da Vila Planetário.

Nem sempre foi assim. No início da pandemia, a entrega de comida era feita em diferentes pontos da cidade. Mas a sistemática foi alterada: “Quando diminuiu a pandemia, os voluntários pararam de vir porque tiveram que voltar à vida normal, mas também percebemos que, quando a gente iria entregar, muita gente já havia entregado antes. Então, ter um ponto nosso era uma referência bem melhor. Aí começamos a entregar só na porta”. A mudança também reduziu o número de entrega das marmitas. “Primeiro a gente entregava 200 marmitas e depois baixamos para 100 porque muitos já eram assistidos.”

Modelo pega e leva

A entrega em um único ponto  foi uma das opções citadas pelo secretário Léo Voigt ao comentar sobre os problemas e soluções da entrega de alimentos. Ele citou especificamente o trabalho feito pela ONG Cozinhar e Servir, que há pouco mais de um ano passou a levar as quentinhas diretamente em regiões específicas da cidade.

A ONG Cozinhar e Servir existe há seis anos e tem à frente o vendedor Rogério de Oliveira Saran. Participante de ações de voluntariado há cerca de quatro décadas, Saran iniciou a preparação e a doação das quentinhas sob o viaduto Tiradentes. Só que, com o passar dos anos, o atendimento à população vulnerável começou a despertar reclamações da vizinhança – e essas reclamações chegaram à prefeitura, que, segundo relatou Saran ao Matinal, apesar de reconhecer o trabalho social desenvolvido, pediu para que eles se retirassem do viaduto. 

A alternativa encontrada pelo grupo de Saran foi fazer a entrega diretamente pelas ruas, o que ocorre de forma ativa, distribuindo o alimento conforme encontram pessoas necessitadas ou a partir do contato com líderes comunitários, num modelo conhecido como “pega e leva”. “Passamos a ativar nossas redes de contato com as comunidades e a levar o alimento às comunidades, como na Zona Sul, Morro da Cruz, Cristal, Alvorada, Cachoeirinha”, descreveu. Na véspera da entrevista, ele disse ter enviado 900 cachorros-quentes e refrigerantes para uma ação no Morro da Cruz.  

Saran calcula que distribui cerca de 2 mil marmitas semanais à população de rua. Para além disso, também entrega alimentos e cestas básicas. É um trabalho que permanece em meio a rumores que a gestão municipal não facilitaria o trabalho voluntário. Um exemplo disso foram as reclamações que fizeram a ONG a sair do viaduto.

Interpelação da Guarda Municipal durante doações

Ele relatou também outro exemplo. Em uma das entregas, neste mês, quando parou o carro para distribuir marmitas na Azenha, foi abordado por agentes da Guarda Municipal, que o informaram que não poderia mais entregar quentinhas em via pública. 

Saran disse que os agentes não o impediram de fato. “Não me senti constrangido porque não estava cometendo um crime, estava numa via permitida de estacionar e foi uma conversa tranquila”, descreveu. Em nota, a Guarda Municipal negou que exista uma ordem para que ações de voluntariado do tipo sejam impedidas: “A Guarda Municipal não tem orientação para intervir em ações sociais em Porto Alegre. O referido episódio não chegou ao conhecimento do Comando-Geral da corporação”, informou a assessoria de imprensa do órgão.

Ao Matinal, Saran explicou que faz as doações “porque já passou fome” e que participa de ações voluntárias há quase 40 dos seus 58 anos. Perguntado sobre o financiamento dos alimentos, ele resumiu: “O Cozinhar e Servir é bancado por doações e pelo Rogério, que é um vendedor”. 

“Prefeitura quer limpar a região”

Voluntária do grupo PF das Ruas, que integra o coletivo Pastoral do Povo da Rua, Karen Garcia de Freitas também disse à reportagem não perceber uma abertura ao diálogo por parte da Prefeitura. “Não houve nenhum tipo de contato comigo nem com outro grupo de alimentação. Todos os grupos estão tão surpresos quanto o PF das Ruas”, afirmou. O grupo informou ter distribuído apenas em um sábado de maio 1.670 marmitas no viaduto Imperatriz Dona Leopoldina, no Centro.

Para Karen, o objetivo da iniciativa do Executivo é retirar as pessoas em situação de rua da região central: “A Prefeitura quer limpar a região, especialmente agora que tem esse projeto de revitalização”, observou. “A justificativa é esse suposto deslocamento da população em busca de alimentação, que dificultaria seu atendimento por parte do poder público. O que você teria a dizer sobre isso? Como estabelecer políticas públicas sem conhecer a lógica da população de rua?”, acrescentou.

Conforme ela, há discrepância entre o número real de pessoas em situação de rua e o que a Prefeitura afirma existir, uma população de cerca de 2,3 mil pessoas – para chegar a este número, a administração municipal desconsidera aqueles que pedem ajuda em ruas ou sinaleiras, mas que possuem residências próprias. “A Prefeitura diz que existem 2,5 mil pessoas na rua. Marchezan falava em 4 mil no (período) pré-pandemia. Como assim? A olhos vistos isso não existe”, retrucou Karen, acreditando que existe mais gente nas ruas do que o que foi contado pela gestão municipal.

A impressão de que a população que vive em situação de rua é maior do que a calculada pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social é compartilhada por Rogério Saran. “Tem mais”, afirmou, convicto. “Os peregrinos (forma como Saran se refere à população de rua) estão cada vez mais jovens na rua. A gente viu muita gente nova na rua, até mesmo gurizada de 20, 18 anos.”

Outro ponto salientado por Saran é no que diz respeito a desterritorialização dos grupos. Mas não em busca de alimento e sim pelo que ele acredita ser consequência da proibição de barracas. “Antigamente, a gente saía e via as pessoas de segunda a sexta no mesmo lugar. Hoje elas estão sumindo desses lugares”, exemplificou. “Quando tiram as barracas, esse peregrino vai ter que mudar de lado. Mas isso ocorre somente em algumas zonas, não em todas.”

No mesmo evento em que Voigt disse que a distribuição de quentinhas era parte do problema, o prefeito Sebastião Melo afirmou que não iria mais permitir barracas nas ruas. Ao Matinal, o secretário contemporizou a fala do chefe do Executivo, mas salientou: “Toda a pessoa em situação de rua vai ser insistentemente abordada. Se ela é resistente a qualquer forma de acolhimento, o que não pode é ela construir um casebre na via pública, isso não será permitido. Ele é livre para ficar na rua, mas não pode ocupar fixamente um espaço ali fazendo uma casa. Isso está dentro do protocolo firmado com o Ministério Público”.

Novo mapeamento da população vulnerável pode ser feito ainda em 2023

A Secretaria de Desenvolvimento Social disse estar preparando um mapeamento mais acurado do real tamanho da população de rua. “Queremos lançar ainda neste ano uma pesquisa quantiqualitativa sobre população de rua, incluindo trabalho infantil”, adiantou ele, sobre o trabalho que pretender realizar ainda neste ano. Em paralelo, contou o secretário, uma outra pesquisa irá mapear as entidades que fazem a distribuição de comida gratuitamente. Será a partir desta catalogação que a prefeitura irá tentar estabelecer algum canal de diálogo com os grupos.

Voigt, porém, disse não acreditar na disposição de todas em conversar: “Algumas das organizações são resistentes”. Em outros casos, não há um representante definido ou formalizações como CNPJ constituído. “Tem grupos muito variados, de uma pessoa a um grupo de empresários. Há perfis e dedicações diferentes.”

A falta de formalização pode se tornar um empecilho para o trabalho em conjunto entre Executivo e grupos voluntários, na opinião do secretário. Integrando uma gestão que defende “parceirizações” com a iniciativa privada, Voigt não crê na repetição do modelo neste atendimento à população de rua: “Se transformarmos isso em uma parceria, precisaria cumprir uma legislação. E se tu estabeleceres que eles cumpram a legislação, inviabilizas a ação desses grupos”.

O titular da Secretaria de Desenvolvimento Social considera a legislação que regula a alimentação bastante rígida – “draconiana”, como definiu. Como exemplo, apontou o projeto de 2021 que autoriza a doação de sobras de alimentos de restaurantes. “Nunca decolou”, garantiu. “Existe um custo mais alto que o alimento.”

A Prefeitura distribui comida gratuitamente também. Isso ocorre em cinco restaurantes populares, que são do município, mas a gestão é “parceirizada” – o que evitaria, também, que a distribuição de comida das ONGs fosse centralizada nesses pontos, como chegaram a sugerir aos entrevistados pelo Matinal. Nos restaurantes, a alimentação é fornecida gratuitamente, mas é necessário estar inscrito no Cadastro Único. De acordo com a gestão municipal, nos três primeiros meses de 2023, os restaurantes populares forneceram 54.101 refeições.

Endereços e distribuição: 

CENTRO: Rua Garibaldi, 461 (400 refeições/dia – segunda a sexta ; e 200 refeições/dia- sábados e domingos).
VILA CRUZEIRO: Rua Dona Otília, 210 (100 refeições/dia – segunda a sexta).
LOMBA DO PINHEIRO: Rua Cacimbas, 159 (100 refeições/dia – segunda a sexta).
RESTINGA: Estrada Chácara do Banco, 71. (100 refeições/dia – segunda a sexta).
RUBEM BERTA: Rua Caetano Fulginiti, 95 (100 refeições/dia – segunda a sexta).

Contato das ONGs citadas

PF das Ruas – [email protected] (e-mail e pix)
Misturaí – [email protected] (e-mail e pix)
Cozinhar e Servir – 51-99901.0393 (contato)

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