Casa destruída na Vila Vargas expõe fragilidade do combate a incêndios em Porto Alegre

De acordo com moradores, o caminhão demorou uma hora e meia para chegar na Vila Vargas – quando chegou, estava sem água. Ambulância do Samu não apareceu para atender os feridos. Número de postos de bombeiros na capital é menor do que a metade do necessário
Enquanto Endrick, quatro anos, assistia à televisão, sua mãe preparava a janta na cozinha, por volta das 21h de uma terça-feira, 29 de agosto. Um curto-circuito no cômodo onde estava a criança, entretanto, principiou um incêndio que se espalharia por toda a casa onde mora a família, na Vila Vargas, zona leste de Porto Alegre.
Karoline Lucas Teixeira, 24 anos, correu para buscar o filho. Ele estava no andar superior, em uma espécie de mezanino, acessível por uma escada metálica em formato caracol. Quando chegou ao andar de cima, foi atingida pelo fogo: queimou o rosto, as mãos e as pernas. Endrick, ao perceber as chamas, correu para fora de casa, mas Karoline só percebeu que o filho não estava ao não encontrá-lo na sala.
A mãe alcançou o filho, que teve uma leve queimadura no pulso, do lado de fora. A casa fica numa travessa entre as ruas Progresso e Dona Firmina. A vizinhança, concentrada em frente a residência, chamou os bombeiros e começou o trabalho de combate ao fogo. Dois extintores do mini-mercado Mercado do Gringo, que fica na esquina mais próxima, foram esvaziados nas chamas. Mangueiras de água das casas vizinhas foram utilizadas enquanto não chegava o caminhão de bombeiros.
O primeiro veículo chegou, de acordo com relatos dos vizinhos, uma hora e meia depois do chamado, mas teria chegado sem água. O segundo caminhão, carregado, veio alguns minutos depois, mas tarde demais. A casa, de alvenaria, teve todo seu interior, telhado, aberturas e móveis queimados. Restaram somente os tijolos e as janelas de metal.
Os bombeiros, porém, negam as informações. “É improvável isso acontecer. com sete guarnições de combate a incêndio em Porto Alegre, mesmo no pior horário de trânsito, alguém iria atender e talvez levasse 20 ou 30 minutos, com tudo dando errado ou conspirando contra. A guarnição que deslocaria sem água é a guarnição de busca e salvamento, mas que não seria despachada para atender um incêndio”, informou a corporação. O boletim oficial sobre a ocorrência não foi encontrado e enviado à Matinal até a publicação desta reportagem. “Nosso pessoal está envolvido com as questões das chuvas”, justificou o Corpo de Bombeiros.
Incêndios como o que destruiu a casa de Karoline e Endrick são comuns na Vila Vargas e do Morro da Cruz, regiões contíguas em Porto Alegre. Na semana anterior, outra ocorrência mobilizou a comunidade. Em julho, a Matinal esteve perto dali, na região do Morro da Cruz, para tratar de uma ponte precária que coloca a comunidade em risco, e retratou uma casa incendiada ao lado da estrutura. Nela, moravam uma avó e seu neto cadeirante que tiveram de sair às pressas de casa, que está em ruínas.
Em 2006, houve a mais trágica ocorrência. Um incêndio em uma casa no Morro da Cruz resultou na morte de cinco pessoas de uma mesma família. Uma doméstica aposentada e quatro de seus cinco filhos viviam em uma casa de dois cômodos, de madeira, quando uma vela caiu no colchão, e o fogo se espalhou rapidamente. A região estava sem luz e sem água naquela noite em razão das fortes chuvas que atingiram a Capital, motivo pelo qual a família havia acesa uma vela dentro de casa.
Instalações elétricas precárias, fogueiras improvisadas para preparo de alimentos ou para o aquecimento das casas sem isolamento do assoalho e com frestas na parede no inverno são as causas mais comuns de incêndios nestes locais. “São dias difíceis na nossa comunidade. Num incêndio as pessoas perdem tudo, é definidor na vida. Aqui somos nós por nós. Essas questões elétricas muitas vezes acontecem porque não há, em algumas partes das vilas, ligação oficial à rede”, afirma uma das coordenadoras do Coletivo Autônomo Morro da Cruz, Nira Martins Pereira.
Bombeiros: efetivo baixo e estações insuficientes
A estação de Bombeiros do Partenon, que atenderia a região da Vila Vargas, está fechada desde outubro de 2017, quando foi destruída por um vendaval – na ocasião, também o Ginásio da Brigada, na Ipiranga, não resistiu à força dos ventos de 120km/h. O atendimento dos locais é realizado com o apoio de duas unidades, do Teresópolis e da Restinga.
“Tão logo ocorra o encerramento das obras de reconstrução do prédio e melhorias que deveriam ser feitas, pretendo reativar o serviço daquela fração. A unidade está organizada para ativar o serviço tão logo o quartel do Partenon esteja pronto para ocupação”, disse o tenente-coronel Marcelo Carvalho Soares, comandante do 1º Batalhão. Ainda não há uma data precisa, mas “a obra está praticamente concluída”, afirmou o oficial.
A capital carece de unidades de bombeiros: são sete postos na cidade, quando o número deveria ser pelo menos o dobro. “O número ideal seria de uma estação para cada 50 mil habitantes – isto é, 26 estações, considerando a população atual de Porto Alegre. Ou, em termos mais exequíveis, pelo menos uma a cada 100 mil. De qualquer modo, estamos longe de uma cobertura suficiente”, afirmou o diretor da Associação de Bombeiros do Estado do Rio Grande do Sul (Abergs), tenente Ederson Franco.
Os pontos ficam hoje na Restinga, na Vila Assunção, no Teresópolis, no Praia de Belas, no Floresta, no Passo d’Areia e no Salgado Filho – o último atende somente às ocorrências do próprio aeroporto.
Para a Abergs, entretanto, o efetivo da corporação também é aquém do necessário. A Lei de Fixação de Efetivo do Corpo de Bombeiros do Rio Grande do Sul prevê 4.101 bombeiros atuando no estado. Atualmente, porém, são aproximadamente 3,09 mil trabalhadores a compor o quadro, mil a menos.
Trauma de perder tudo
Karoline, em choque e com queimaduras, foi acudida pela comunidade. Ela ainda tentou entrar na casa novamente para buscar um botijão de gás, temendo uma explosão – cheio, devastaria não apenas o que restava de sua casa, mas também as residências vizinhas, que são quase coladas umas às outras. Foi impedida por uma vizinha.
Uma ambulância do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) também foi chamada, mas nunca apareceu. Karoline e Endrick foram levados ao Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre, a oito quilômetros dali, no carro de um vizinho. Ela teve queimaduras de segundo grau.
Karoline e o filho estão na casa da irmã, Vanessa Lucas Teixeira, que mora uma quadra acima. Foi com ela que conversou a reportagem da Matinal – Karoline precisou retornar ao HPS em duas ocasiões desde o incêndio, por crises de ansiedade. “A casa foi deixada pelo nosso pai, que faleceu no ano passado. Eram ela e Endrick, o xodó dele. Agora ela está medicada, tratando tanto das queimaduras quanto do abalo emocional”, disse Vanessa.
A mãe, desempregada, passava a maior parte dos dias dedicando cuidados ao filho. Atualmente, cerca de 6 mil crianças de zero a cinco anos estão na fila de espera por uma creche em Porto Alegre – Endrick é uma delas. A comunidade se mobiliza para reconstruir a casa da família. Um mutirão arrecadou dinheiro para pagar uma vaga em uma creche particular para o menino, na Vila Vargas.
As organizações Coletivo Autônomo Morro da Cruz e Grupo Voluntário Jana do Bem fizeram orçamentos nas lojas de material de construção do bairro, e já recebem doações. Cerca de R$ 6 mil serão necessários para a obra.
Saiba como ajudar: entre em contato com a ONG Coletivo Autônomo Morro da Cruz pelo telefone/Whatsapp (51) 99220-7077.
Fale com o repórter: [email protected]

Esta reportagem faz parte do projeto Pé no chão: jornalismo investigativo local pautado com a comunidade e partiu de uma sugestão de moradores do Morro da Cruz. A região participa da primeira fase do projeto selecionado para o programa Acelerando Negócios Digitais, promovido pelo Centro Internacional para Jornalistas e pela Meta. Saiba mais.