Médico do “gabinete paralelo” é indicado para câmara técnica de infectologia do Cremers
Ex-consultor do “gabinete paralelo” do Ministério da Saúde e investigado por experimentos clandestinos, Ricardo Zimerman e outros dois médicos pró-tratamento precoce são cotados para câmara de infectologia do conselho de medicina gaúcho
Um dos consultores do “gabinete paralelo” do Ministério da Saúde que orientou o governo Bolsonaro no combate à covid-19, o médico infectologista Ricardo Zimerman foi indicado à câmara técnica da especialidade no Conselho Regional de Medicina do RS (Cremers). A portaria que pode consolidar a nomeação será votada em plenária do órgão nesta quinta-feira, 30 de junho.
Defensor do chamado “tratamento precoce” com hidroxicloroquina e crítico à quarentena, às máscaras e às vacinas, Zimerman foi recomendado pela médica oftalmologista Isabel Habeyche, militante bolsonarista e atual coordenadora das câmaras de especialidades do Cremers, setor responsável pelos pareceres técnicos do Conselho. A indicação incomodou sociedades científicas e profissionais da área, que tentaram barrar o ex-consultor do governo Bolsonaro, sem sucesso – o médico foi um dos convidados pelo senador Luís Carlos Heinze (PP) para defender o uso de remédios ineficazes na CPI da Pandemia no ano passado.
A informação foi checada pelo Matinal junto a dois profissionais com conhecimento direto da nomeação, que preferiram não se identificar por temerem represálias de Zimerman, conhecido por assediar críticos. Outras duas fontes que o conhecem profissionalmente também foram consultadas. Em um dos ataques recentes, o infectologista disse a uma médica gaúcha que ela “fica mais bonita de máscara” ao rebater críticas a um estudo seu retratado por suspeita de fraudes. No ano passado, após uma reportagem revelar que o médico coordenou experimentos clandestinos com proxalutamida, um remédio experimental para câncer e ineficaz contra covid-19, no Hospital da Brigada Militar, Zimerman também incitou ataques virtuais contra o Matinal e sua equipe.
Procurado, um porta-voz da Sociedade Gaúcha de Infectologia (SRGI) confirmou a indicação de Zimerman e revelou que a entidade quis indicar os nomes da câmara técnica, mas “não teve espaço”. “Então nos retiramos e não participamos. O Cremers é autônomo e soberano”, disse. Por e-mail, o Conselho de Medicina gaúcho não desmentiu nem confirmou a indicação dos médicos e informou que iria se pronunciar apenas após a publicação da portaria que nomeará as novas câmaras técnicas, a ser votada nesta quinta.
Conforme apurado pelo Matinal, após manifestações contrárias à nomeação de Zimerman, a indicação teria sido levada à plenária para ser votada pelos conselheiros, mas sua permanência venceu – com voto favorável do atual presidente do Cremers, Carlos Sparta, que é filho do conselheiro licenciado do órgão, Mauro Sparta, atual secretário de saúde de Porto Alegre. “É ano de eleição e estamos no Brasil, então nada surpreende. Mas eu não imaginava que o Cremers estivesse sob tamanha influência política”, afirmou uma fonte médica.
Desinformação profissional
Além do médico do “gabinete paralelo”, também teriam sido indicados pela coordenadora das câmaras técnicas do Cremers, Isabel Habeyche, os infectologistas Renato Cassol e Maria Luísa Aronis, ambos ligados a Zimerman e apoiadores do suposto “tratamento precoce”. Os dois já assinaram manifestos da entidade Médicos pela Vida, grupo patrocinado pela Vitamedic, fabricante da ivermectina.
Em contato com o consultório de Cassol, o médico respondeu que havia sido “informalmente indicado” à câmara e que aguardava confirmação da nomeação, enquanto Aronis e Zimerman não retornaram à reportagem.
Em um cenário de pandemias e doenças infecciosas emergentes, a câmara da especialidade é uma das mais requisitadas do conselho. “Quando se tem dúvidas sobre tratamentos, já que nem todo conselheiro sabe de tudo, usa-se esse órgão consultivo [as câmaras técnicas], teoricamente de pessoas ilibadas e experts, que dão seus pareceres sobre assuntos relacionados à sua especialidade”, explicou uma das fontes.
O Matinal apurou que Zimerman também teria sido o médico escolhido por Habeyche, responsável por sua indicação, para tratar uma parente infectada pelo coronavírus. O tratamento receitado, no entanto, não teria funcionado, e a familiar da conselheira do Cremers acabou internada em um hospital privado da Capital, mas sobreviveu. A reportagem tentou contato com Habeyche por meio da assessoria do Conselho, que disse que a médica não iria conceder entrevista.
O mesmo ocorreu com o deputado federal Osmar Terra, que recorreu aos serviços do médico em novembro de 2020. À época, Terra piorou da covid-19 e precisou finalizar o tratamento em uma UTI. “Entusiastas desses remédios dizem que seus pacientes não morrem. Claro, quando pioram são internados para serem tratados conosco. E se a pessoa morre, não é mais morte do tratamento precoce, mas nossa”, desabafou uma das fontes ouvidas, que trabalha em um grande hospital da Capital.
Ex-infectologista da Santa Casa de Porto Alegre, Zimerman começou a ganhar projeção nacional a partir dos primeiros meses da pandemia, quando se tornou uma voz dissonante dos consensos científicos ao falar contra o lockdown, máscaras e quarentena. A partir daí, começou a participar de lives de associações patronais ou promovidas por políticos de direita.
“Percebemos desde o início da pandemia que grupos usam estratégias pseudocientíficas para ganhar ‘notoriedade pelo contraditório’. Primeiro contra máscaras e isolamento, depois a favor de tratamentos ineficazes e depois com questionamentos às vacinas”, explica o médico infectologista Alexandre Naime, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e professor da Unesp, que diz que o Ministério da Saúde foi aparelhado pela “pseudociência” durante a pandemia.
“Houve uma falha de coordenação do governo e a conivência do conselho federal de Medicina com questões absolutamente anticientíficas e fora das evidências”, critica Naime. Estudos apontam que cerca de 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas caso o País adotasse medidas adequadas no combate à covid-19 – hoje, a doença já vitimou mais de 671 mil brasileiros.
Ao final de 2020, Zimerman era um dos médicos do “gabinete paralelo” do Ministério da Saúde e prestava consultorias ao governo no combate à pandemia. O médico chegou a visitar o Amazonas às vésperas do colapso manauara no início de 2021, quando centenas morreram pela falta de oxigênio nos hospitais. Na época, a política do governo federal era distribuir cloroquina aos infectados.
“Big Pharma” são os outros
Hoje crítico da “Big Pharma”, ressoando uma teoria da conspiração que diz que governos e grandes farmacêuticas estariam ocultando terapias eficazes por ganhos financeiros, como quando vendem milhões de vacinas no lugar de oferecerem o “tratamento precoce” contra covid-19, Zimerman foi um médico patrocinado pela indústria hospitalar antes da pandemia.
Entre 2016 e 2019, o médico chegou a conduzir estudos financiados pela 3M, multinacional do ramo de EPIs e produtos médicos, e atuou como palestrante da empresa em congressos com o objetivo de promover uma “tampa de desinfecção passiva”, dispositivo usado para evitar que pacientes internados sofram com infecções hospitalares. “Quando você vai manipular um cateter conectado à veia central de um paciente, o procedimento correto é higienizar após abrir. Mas essa outra tampinha (promovida por Zimerman) tem um mecanismo que rompe já no ato. Por isso é desinfecção passiva: evitaria que as pessoas esquecessem de higienizar. É um bom produto, mas não é essencial e é bem mais caro”, explica um dos infectologistas consultados.
Hoje, o infectologista é investigado pelo próprio Cremers por conta de experimentos clandestinos realizados com proxalutamida no Hospital da Brigada Militar – a sindicância foi aberta no ano passado. De acordo com uma das fontes médicas consultadas, o apoio interno ao infectologista pode salvá-lo de punições, já que os procedimentos são julgados pelos próprios membros do conselho. “Ele vai estar lá dentro (do Cremers) agora. Se tem conselheiros que já se declararam publicamente favoráveis a um tipo de tratamento, não tem conflito de interesses?”, questiona.