Eleições 2022 | Reportagem

Mais regionalização e recursos: a saúde pós-covid no Rio Grande do Sul

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Mais regionalização e recursos: a saúde pós-covid no Rio Grande do Sul RS precisa reverter quadro de baixa adesão de crianças a vacinas (Foto: Cristine Rochol/PMPA)

Próximo governador terá a missão de salvar o IPE Saúde, melhorar a alocação de recursos do SUS e reorganizar os atendimentos de alta complexidade

Após enfrentar uma pandemia que tirou a vida de mais de 40 mil gaúchos, os serviços de saúde do Rio Grande do Sul retomam aos poucos a sensação de “normalidade”. O próximo governo terá o desafio de implementar melhorias no sistema público adiadas pela crise sanitária. E isso significa também a volta de mais recursos, que estavam represados antes mesmo da pandemia: entre 2015 e 2020, o percentual de investimentos dentro do orçamento estadual da saúde ficou abaixo de 1%, como mostra um levantamento feito pelo Matinal. 

Os gastos relacionados à covid-19 foram descontados do cálculo para fins de comparação. Ao longo desse período marcado pela gestão de José Ivo Sartori (PMDB) e a primeira parte do governo de Eduardo Leite (PSDB), os investimentos anuais na área sequer chegaram aos R$ 50 milhões. 

A recuperação veio só em 2021, com a retomada de investimentos na ordem dos R$ 150 milhões, e a expectativa de passar dos R$ 200 milhões até o fim deste ano, patamares semelhantes aos do governo Tarso Genro (PT).

O Sistema Único de Saúde (SUS) tem uma gestão compartilhada por União, estados e municípios. Entre as atribuições definidas por lei para a gestão estadual, há o dever de promover a descentralização do SUS, prestar apoio técnico e financeiro aos municípios, e gerir sistemas de alta complexidade. É aí que estão os maiores desafios: “Há um gargalo de vagas, consultas e exames complementares e de alta complexidade. As pessoas levam muito tempo para conseguir um atendimento que às vezes só é feito nos grandes hospitais de Porto Alegre”, avalia Claudia Franco, presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Rio Grande do Sul (Sergs). De acordo com ela, que trabalha na enfermagem do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, dezenas de vans com pacientes de diferentes cidades chegam todos os dias no hospital. “Tem gente que vem da fronteira e atravessa o Estado para fazer uma consulta, sendo que poderia ser atendida em Santa Maria, por exemplo. Tem casos de oftalmologia, urologia, que poderiam ser regionalizados”, diz.  

Além dos problemas de distribuição dos serviços em todo o território, o setor da saúde também se viu fortemente afetado pela falta de coordenação em relação à condução da crise sanitária – protagonizado pelo negacionismo do governo de Jair Bolsonaro (PL), mas também com brigas públicas entre Leite e prefeitos gaúchos.

De forma pioneira, o governo estadual propôs o Modelo de Distanciamento Controlado (MDC). Inicialmente saudado por reunir cientistas e estatísticos experientes, que ajudaram a desenhar o MDC, a estratégia acabou extinta pelo próprio governo após uma série de flexibilizações, revisão de critérios, disputa judicial entre governadores e prefeitos e por não ter previsto a onda de covid-19 que matou 16 mil gaúcho em quatro meses, tornando Porto Alegre um foco de preocupação em escala global

Uma pesquisa desenvolvida por cientistas da UFRGS, detalhada com exclusividade em uma reportagem do Matinal, mostrou que o MDC de Leite, substituído hoje pelo sistema 3A’s de monitoramento, não foi capaz de quantificar a real dimensão da epidemia no Estado, tornando-se insuficiente para deter seu avanço. Isso se deveu a dois motivos: o modelo não mediu o número efetivo de reprodução do coronavírus (a principal métrica para avaliar o avanço de uma pandemia); e deu à capacidade de atendimento do sistema de saúde um peso desproporcional no cálculo de indicadores. 

O Sistema 3As iniciou em maio quando a vacinação já estava avançando no Estado e segue sendo adotado – o modelo emite alertas que, dependendo do nível de gravidade, obrigam o município a apresentar um plano de ação. Agora, às vésperas das eleições, cerca de 55,4% da população apta a imunizações concluiu o esquema vacinal (até a terceira dose), o que tem ajudado a controlar a covid-19 em todo o Estado – são mais de 80% da população vacinável com duas doses. Mesmo com o controle da doença, alguns grupos, como as crianças, seguem desprotegidas: apenas 12% daquelas com 3 e 4 anos haviam tomado a primeira dose disponível desde o dia 20 de julho. Este é um desafio que permanecerá para a próxima gestão. “Ainda tem um monte de gente que deixou de procurar as vacinas porque está sendo influenciada por um discurso irresponsável”, observa Claudia Franco.

Impasse no IPE Saúde

O outro passivo que herdará o novo ocupante do Piratini é o IPE Saúde, o plano de saúde dos servidores estaduais que atende a 1 milhão no Rio Grande do Sul. A crise irrompeu em março, quando a Federação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos do Rio Grande do Sul e a Federação dos Hospitais do Rio Grande do Sul (Fehosul) deram um ultimato ao governo estadual para o risco iminente de rescisão dos contratos com o IPE e suspensão do atendimento a usuários. Se concretizados, 10% da população gaúcha ficará sem plano de saúde. 

O anúncio pegou Eduardo Leite de saída do Piratini, disposto a concorrer à disputa presidencial – o tucano deixou o governo nas mãos do vice Ranolfo Vieira Júnior em 31 de março –, e expôs o que a Federação Sindical de Servidores do RS, Fessergs, chama de descaso absoluto com o IPE e demais serviços essenciais. “Nesta gestão, o IPE Saúde teve seis presidentes e nenhum deles com qualificação em administração de saúde”, diz o presidente da entidade Sergio Arnoud. “Historicamente o IPE serve a interesses políticos e não foi diferente nesta gestão”. O atual, Bruno Jatene, é ex-chefe do Tesouro de Leite, um gestor de perfil técnico, mas sem experiência no setor. Desde quando assumiu, Jatene implementou um plano para solucionar o impasse. No início de setembro, o governo fez repasses da ordem de R$ 205 milhões a hospitais para tapar o rombo dos atrasos. Segundo o governo, com o aporte, somente um dos cinco grupos de contas médicas (de contas ambulatoriais) permanece com atraso superior a 90 dias.

Arnoud, que acompanha de perto a situação do IPE, enumera como quatro os problemas principais. O primeiro deles é a falta de receita do órgão, que por sua vez está vinculada ao salário dos servidores estaduais, congelado há oito anos. “Houve 6% de reajuste no período contra 100% de inflação. Nenhuma conta fecha”, diz Arnoud. Entre 2020 e 2021, as receitas subiram R$ 22 milhões e as despesas, R$ 419,1 milhões. O IPE Saúde historicamente é deficitário, mas a pandemia piorou uma situação já grave. O segundo seria a falta de qualificação da gestão – desde Sartori, o presidente é uma indicação política e não ocorre a divisão de gestão entre segurados e políticos. O terceiro, a falta de auditoria dos gastos, é outro problema. Segundo Arnoud, não há controle nem dos gastos, nem das receitas, fator que ele associa diretamente à falta de gestão qualificada. “Os presidentes do IPE acabam sempre sendo candidatos não eleitos à Câmara ou à Assembleia. Isso não pode ocorrer”, diz. Arnoud se diz surpreso com o descaso com uma entidade tão significativa para o Estado, com orçamento de R$ 2,2 bilhões, um dos maiores nas contas estaduais.

A Fessergs apresentou o plano para sanar as contas do IPE Saúde que passam por voltar a direção paritária entre governo e segurados; ter uma direção com mandato de dois anos; e seguir critérios técnicos para indicação do próximo presidente. “Precisamos de gestores com conhecimento da área de saúde pública”, observa Arnoud.

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