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Mudanças no Twitter ameaçam futuro da rede para divulgação científica

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Mudanças no Twitter ameaçam futuro da rede para divulgação científica Foto: Fiocruz Imagens

Após destaque durante a pandemia, grupo de cientistas gaúchos que ganhou proeminência na rede ao divulgar informações sérias sobre a covid-19 lida com perda de engajamento e vê ascensão de negacionistas na rede

Seria equivocado dizer que foi de uma hora para a outra. Mas, fato é, o Twitter está diferente. E não é só por causa do focinho do Balltze, que dá cara ao dogecoin e que nos últimos dias andou substituindo o famoso passarinho azul no canto da tela. Outrora um canal de busca ágil por informações, muitas vezes direto da fonte, a plataforma vem se tornando um terreno nebuloso, onde os parâmetros de veracidade e credibilidade ficaram não só turvos como viraram mercadoria, que pode ser comprada por qualquer um, inclusive quem quer desinformar.

Consolidado como uma das principais redes sociais do mundo, o Twitter foi adquirido em 2022 pelo empresário bilionário Elon Musk, numa operação que só foi concluída após meses de imbróglio judicial. Musk não apenas comprou a plataforma, como assumiu o controle dela e começou a fazer mudanças, que foram sentidas desde o público interno, com demissões em massa no Twitter, como o público externo, os usuários da rede. 

Talvez uma das mais marcantes é a que está sendo aplicada desde 1º de abril. O selinho azul, antes um sinal autenticador da conta, agora não somente está à venda como será exclusivo para quem paga para contratar o chamado “Twitter Blue” ao custo de R$ 42 por mês. A novidade dá aos usuários, dentre outras possibilidades, preferência do algoritmo. 

Nesta primeira semana, contas como as dos jornais The New York Times e Washington Post deixaram de contar com o símbolo, que, por precisar ser retirado quase que manualmente pelos funcionários do Twitter, demandará mais tempo até a conclusão da diretriz estabelecida pela nova direção. Não há um prazo conhecido até que essa limpa seja concluída e tampouco são transparentes os critérios. Segundo a Variety, cerca de 10 mil empresas serão isentas de pagamento e manterão o selo. 

Twitter como fonte de informação

Um dos aspectos mais preocupantes será o futuro do Twitter como uma fonte de informação e divulgação científica. Meses antes da compra, a rede social se destacou como um ambiente propício para a busca por informações sobre a covid-19, o andamento das pesquisas relacionadas às vacinas e, posteriormente, os problemas causados pelas variantes do coronavírus.

No Rio Grande do Sul e em nível nacional, um dos nomes que se destacou aparecendo em milhares de timelines foi a biomédica Mellanie Fontes-Dutra, hoje professora da Unisinos e uma idealizadora e uma das coordenadoras da Rede Análise Covid, cujo trabalho iniciou em 2020. Se no começo da pandemia ela tinha cerca de 2 mil seguidores, hoje soma quase 97 mil. Muitos de seus fios explicativos viralizavam e atingiram públicos mais diversos dos quais ela estava acostumada a falar até então.

Não muito depois que a notoriedade chegou, quem apareceu na conta de Mellanie, sem ser sequer requerido, foi o famoso selinho azul. Este momento, conta ela, marca a sua percepção sobre a plataforma. “Antes de eu ter o selo azul, eu o via como um marcador de autenticidade, que era uma conta daquela pessoa e não um fake, e que era uma pessoa com relevância na área em que atuava, reconhecida por isso. Ou seja, o selinho informava que tanto o conteúdo quanto a pessoa eram autênticos. Era um selo relacionado à autenticidade que trazia certa importância àquilo que estava sendo criado”, descreve. “Depois dessa mudança do Twittter Blue, percebi que ficou enevoado.” 

Em meio às incertezas daquele momento da pandemia, o Twitter mostra-se uma plataforma favorável à ciência. Colega de Rede Análise de Mellanie, o analista de dados Isaac Schrarstzhaupt foi outro que notou o potencial a partir de suas postagens, as quais, revela ele, vincularam-se à ciência quase que por acaso, por conta do que chamou de “vácuo” de informações fornecidas pelo governo federal sob a gestão Bolsonaro.

“Vi que podia ajudar as pessoas a entenderem os dados”, diz ele, que inicialmente começou a postar suas análises em grupos do Facebook. Quando migrou para o Twitter, o alcance se multiplicou, junto com o número de seguidores, que saltou de poucas dezenas para dezenas de milhares. Isaac foi entrevistado pelo Matinal em janeiro de 2022, quando, a partir de seus gráficos, alertava que o RS caminhava para o recorde de casos ativos – o que se confirmou pouco depois.

Do selo azul à queda de engajamento e ascensão de negacionistas

Amparados pelo selo de verificação, Mellanie e Isaac, assim como diversos outros pesquisadores, fizeram do Twitter um local de propagação de conteúdo científico na pandemia. E mesmo que a procura de informações acerca do coronavírus fosse baixando com o passar do tempo – o que ocorreu em especial no ano passado, a partir de fatores como o avanço da vacinação, a queda de mortes relacionadas à covid e o fim do isolamento – o trabalho foi mantido.

Até pouco tempo atrás, os conteúdos geravam engajamento, segundo a dupla. No entanto, pouco a pouco, a partir da chegada do novo dono da rede social, as coisas começaram a mudar. “Eu precisaria fazer um cruzamento de dados para identificar quando exatamente o engajamento começou a cair, mas tenho a impressão de que iniciou depois do Musk comprar o Twitter”, conta Mellanie.

Para além do engajamento em queda, outras medidas, como o encerramento da curadoria específica do Twitter sobre o coronavírus e das possibilidades de denúncia de conteúdo falso sobre o assunto à plataforma, também foram notadas pelos pesquisadores. Então, o que era uma área favorável à divulgação científica foi virando, pouco a pouco, um campo de batalha entre cientistas e negacionistas. 

“Ou todo mundo se desinteressou ao mesmo tempo ou o aconteceu alguma coisa que o assunto covid não era mais tão entregue. Achei estranho”, relata Isaac. “E em algum momento, o pessoal anticiência viralizava super fácil, e nós não. Mas a gente não mudou nada (na forma de produzir). Definimos que vamos continuar fazendo o mesmo conteúdo.”

Isaac salienta não haver como provar que o Twitter sob Musk passou a boicotar cientistas, contudo vê indícios disso. Ele cita o gráfico feito pelo escritor e também divulgador científico, Ketan Joshi, que trata sobre clima. No fim de março, Ketan postou um gráfico em que, a partir de uma análise, aponta a redução ou estagnação de contas que alertam sobre as mudanças climáticas ante uma disparada de perfis ligados ao negacionismo no tema.

“Parece que as contas de negacionistas receberam uma proeminência artificial desde a compra de Musk. Impulsionados pela aba ‘para você’, aparecendo primeiro em respostas e exibidos em tópicos no campo ‘explorar’”, escreveu Ketan, que já escreveu para jornais como The Guardian e atualmente trabalha para a European Climate Foundation, uma iniciativa filantrópica que auxilia no desenvolvimento de energias sustentáveis.

No Brasil, um dos casos que sugerem essa mudança de políticas da plataforma é o de uma jornalista conhecida por uma postura antivacina e por ataques a cientistas. Depois de ser suspensa algumas vezes, ela chegou a ser banida do Twitter em agosto passado porque “violou regras de desinformação da covid-19”. 

O banimento, porém, durou três meses. Em novembro, cerca de um mês depois de Elon Musk ter assumido o controle da plataforma, ela voltou. Hoje, tem mais de 106 mil seguidores no Twitter. 

Diante do esforço gerado e com a propagação de perfis negacionistas, Isaac admite certo desânimo com o Twitter: “A gente fica meio triste, porque percebe a tal da praça pública ser manipulada”.

O selo azul 

Anúncio do Twitter Blue

“O meu maior problema com isso do selo verificado ser mais abrangente é que hoje a plataforma tem uma circulação muito grande de conteúdo informativo. Precisava de ter uma consciência e um gerenciamento quanto a isso. Essa parte é muito nebulosa”, comenta a biomédica Mellanie Fontes-Dutra.

A especialista diz respeitar o entendimento do Twitter em cobrar, mas acredita que teria sido melhor a rede criar outros tipos de selo pagos, com cores ou formas diferentes para preservar a verificação anterior e, assim, evitar a confusão. “Bem ou mal, o selo representa algum significado”, diz. Segundo ela, o temor de divulgadores científicos é a de que contas que propagam desinformação passem a ser verificadas com o selo azul.

“A questão não é ter de pagar pelo selo. O meu problema maior é não saber como a rede gerencia a desinformação hoje. O que me preocupa é isso: perfis desinformativos ganharem engajamento por ter esse selo e, no imaginário popular, o selo ainda passar notoriedade”, explica Mellanie, que aponta ainda que a verificação passa avaliação de credibilidade ao leitor da rede social.  

Professor do Mestrado em Divulgação Científica e Cultural e pesquisador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp, Rafael Evangelista respalda esse entendimento. “Isso fomenta desinformação e é mais nocivo, porque o selinho foi em algum momento utilizado como um verificador de fato. De certa maneira, o que estava ali (nos perfis verificados) era um pouco mais crível do que o pessoal sem selo”.

Ele acredita que a mudança na verificação do Twitter, a longo prazo, trará prejuízo à própria rede. “As pessoas entendiam o selinho azul como se a informação daquela pessoa fosse verificada. Agora, essa mudança, praticamente torna o selo azul algo irrelevante”, afirma. “Vai ter um efeito, a longo prazo, de desprestígio, porque as pessoas vão entender que aquilo não significa nada.”

Na opinião do pesquisador, a rede estabelece uma espécie de “chantagem” por audiência e relevância a projetos de comunicação, incluindo os divulgadores científicos e mesmo jornais menores. Isso se dá por conta de uma próxima grande mudança a ser feita na rede, na aba “Para você”, que a partir de 15 de abril, só exibirá tuítes de perfis com contas verificadas.

Assim como Mellanie, Evangelista critica o pagamento por um selo idêntico ao do grupo que havia sido verificado anteriormente: “Se o Twitter resolve ter uma aba para os tuítes que querem aparecer, tudo bem, seria menos nocivo do que aproveitar um símbolo de alguma credibilidade e transformá-lo em tuíte patrocinado – na prática, foi isso que virou”.

Nem Mellanie e nem Isaac perderam o seu selo verificado nesta primeira semana sob novas regras. Ao menos por enquanto, nenhum dos dois pretende pagar pelo Twitter Blue. “Enquanto eu não entender a proposta deste selo não faz sentido eu fazer o pagamento”, justifica a cientista. “Hoje eu não me sinto convencida de que pagar vai estar de acordo com o que eu entendia sobre o que o selo representava na gestão anterior.”

Para Isaac, a cobrança por mais engajamento até faria sentido, mas ressalta que é a partir do conteúdo feito na rede que se prende a atenção e se mantém usuários no site. “O que aconteceu é uma subversão de conteúdo em que o produtor vai ter que pagar para produzir conteúdo”, observa ele, criticando a lógica de “dar voz” apenas para quem paga. “É o contrário do YouTube”, compara o analista.

Debandada 

Com as mudanças promovidas por Musk, muitos cientistas decidiram sair da rede. Esta foi a decisão do ex-reitor da UFPel e coordenador da pesquisa Epicovid, Pedro Hallal, e da bióloga Natália Pasternak, outra voz de relevo ao longo da pandemia.

Em sua coluna no jornal O Globo, Natália atribuiu a decisão da saída à chegada de Musk à direção da rede social: “Com a troca de controle do Twitter, o ambiente ali deteriorou-se. Perfis que haviam sido banidos por assédio, racismo e homofobia foram convidados a retornar. A monetização do selo verificado e dos impulsionamentos de conteúdo facilitam a multiplicação de câmaras de eco, discursos de ódio, fazendas de trolls e aceleradores de desinformação. Assédio, difamação e calúnia são premiados com aplauso e visibilidade ampliada”, escreveu.  

Sair do Twitter é uma opção analisada pelos integrantes da Rede Análise Covid. “Temos ponderado sobre isso. Acho que uma das movimentações que podemos ter é começar a criar conteúdo em locais mais seguros para este tipo de comunicação”, diz Mellanie. Na semana passada criou uma newsletter para a divulgação de seu conteúdo na plataforma Substack. Porém, na última quinta-feira, o Twitter reduziu o alcance de links do Substack. Usuários que tentaram interagir com esses tuítes, seja curtindo, respondendo ou retuitando, receberam a seguinte mensagem, conforme o site Tecnoblog: “Algumas ações neste tweet foram desativadas pelo Twitter”. A rede de Musk não se manifestou.

“Essa mudança abrupta é um lembrete de por que os escritores merecem um modelo que os coloque no comando, que recompense bons trabalhos com dinheiro e que proteja a liberdade de imprensa e de expressão”, escreveram os fundadores do Substack, Chris Best, Hamish McKenzie, and Jairaj Seth. A medida foi adotada dias depois de o Substack ter lançado o “Notes”, uma plataforma bastante semelhante ao Twitter.

“Este trabalho tem uma função social”

Isaac afirma que estuda possíveis caminhos a serem seguidos – redes como Spoutible e Koo surgem como possibilidades. A ideia primordial, conforme ele, é não parar. “O principal é a divulgação científica perceber que ela tem força suficiente. A gente pautou governos”, destaca. “Quando mostrei subnotificação, até o pessoal do Jornal Nacional me procurou. Não podemos parar a divulgação, temos que duplicar, para que as redes percebam que o divulgador é um aliado e tente atraí-los, o que vai fazer com que a rede inteira ganhe credibilidade”, argumenta. “Este trabalho tem uma função social.”

O professor da Unicamp Rafael Evangelista pondera que é necessário ficar atento à linguagem imposta pelas redes por meio dos algoritmos. “O divulgador científico precisa ser pautado por uma boa comunicação, se não se corre o risco de distorcer uma pesquisa porque o formato pedido pelas redes favorece a linguagem sensacionalista”, alerta. “Precisamos analisar os efeitos na qualidade desta comunicação.”

 Para Evangelista, a relação entre ciência e comunicação sempre foi tensa, mas o contexto agora é mais complexo com as redes sociais. “Agora estamos vivendo o que se chama de economia da atenção. As plataformas conseguem mais lucros quanto mais conseguem prender a atenção dos usuários, porque eles vão ser alvo dos anúncios, mas também vão compartilhar seus dados de navegação e acabam se tornando um produto para a plataforma. A divulgação científica feita nas plataformas acaba sujeita a essas demandas da economia da atenção”, complementa.


Editor do Matinal, Tiago Medina, que é o @tmedina no Twitter, recebe e-mails em [email protected]

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