Compra de kits por gestão Melo impõe método privado a escolas, avaliam especialistas
Cinquenta e quatro escolas municipais receberam kits didáticos no valor de R$ 14 milhões comprados sem licitação. Nova lei proposta por Melo permitiu driblar fiscalização e calou Conselho Municipal de Educação, que não foi consultado e nem pôde fiscalizar a compra
Pesquisadores especializados em educação ouvidos pelo Matinal consideram que a compra de R$ 14,4 milhões em kits didáticos pela Prefeitura de Porto Alegre desrespeita escolas e professores da rede municipal, que não foram consultados sobre a aquisição. Entre outubro e dezembro do ano passado, a Secretaria Municipal de Educação (Smed) dispensou licitação para comprar milhares de kits do Programa MenteInovadora, alegando que a empresa contratada, a MindLab Brasil, detinha a exclusividade dos produtos adquiridos.
A exemplo das caixas de livros recentemente compradas em um processo sem concorrência, os kits chegaram de surpresa em 54 escolas. O programa acrescenta ao currículo escolar uma aula semanal de 45 minutos, ministrada pelos professores e sob supervisão da MindLab, que diz ter apresentado a metodologia aos gestores de escolas, além de ter feito três encontros virtuais com professores do 1º ao 7º ano.
No total, são três os kits comprados. O kit do aluno contém dois livros e um guia para integração da família na metodologia de aprendizagem; professores recebem diários, livros para registrar atividades dos alunos e o guia para a família; já a escola recebe livros com instruções para a metodologia e seus respectivos jogos de raciocínio.
Elisabete Búrigo, professora dos programas de Pós-Graduação em Educação e Ensino de Matemática da UFRGS, fez uma análise minuciosa do programa MenteInovadora e das justificativas da prefeitura para a compra a pedido de Matinal. A especialista criticou a proposta de alteração curricular para inserir uma metodologia complementar sem consulta aos órgãos competentes e às comunidades escolares. “A ‘parceria’ proposta pretende introduzir no cotidiano escolar um agente privado, sem qualquer fundamentação. O Termo de Referência do contrato estabelece uma alteração curricular sem consulta ao Conselho Municipal de Educação (CME) ou às escolas e, portanto, à revelia da legislação”, disse a professora.
Fabiane Pavani, ex-presidenta do CME, confirmou que o conselho não foi consultado sobre a compra. Com a aprovação da nova lei do Sistema e Municipal de Ensino em setembro do ano passado, não é mais competência do CME fiscalizar atos do Executivo. Além disso, a Smed adquiriu poder de veto sobre os atos do conselho, que perdeu a função de apreciar o Plano Municipal de Educação. “Sei que parece sem sentido, pois um conselho de acompanhamento social deveria ser autônomo. Era, não é mais. O Ministério Público (MP) e o Tribunal de Constas do Estado (TCE) acompanham o nosso caso”, disse Pavani.
Pela antiga legislação, a compra não precisaria passar por aprovação do CME, mas o conselho poderia exigir manifestação da Smed e produzir um parecer para instrumentalizar uma eventual denúncia junto ao Ministério Público e ao Tribunal de Contas do Estado. “Seria bem difícil para o Executivo. Agora, não há mais fiscalização. Por essa razão, temos denunciado que a legislação aprovada na Câmara é inconstitucional”, completou Pavani.
Pedagogos questionam imposição do programa
Segundo a Smed, o programa “corresponde à proposta curricular da rede de ensino e complementa as atividades educativas oferecidas nas unidades escolares”. Mas os documentos não dizem a qual proposta curricular os kits correspondem nem como o MenteInovadora se distingue de outras metodologias. A Smed apenas copia o texto de apresentação da MindLab, que identifica a empresa como “representante exclusiva no Brasil desta Metodologia e seus materiais, sendo líder mundial no desenvolvimento de habilidades e competências, estando presente em mais de 22 países”.
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, Fernando Becker questiona o que entende como a imposição de um modelo sobre a rede de ensino municipal. “Não faz sentido esse tipo de compra. Seria preciso oferecer cursos intensivos para todos os professores do município e ter certeza de que todos estariam de acordo com o uso de tal material. Tenho reservas sobre a proposta de ‘forçar’ o uso de uma forma de atividade motivadora para dentro de uma proposta pedagógica”, observou Becker.
Elisabete Búrigo lembra que, desde a década de 1990, rankings e avaliações externas passaram a ganhar credibilidade e embasar parcerias com empresas que prometem resolver lacunas nas redes públicas de ensino. Haveria um processo de obsolescência programada: teoricamente inconsistentes e desconsiderando a singularidade de estudantes de diferentes estratos sociais, as avaliações funcionariam como “alavancas” para a compra de pacotes privados. Para Búrigo, a compra atual feita pela gestão Melo segue essa lógica.
A professora também chama atenção para uma situação de “dependência” do município relativamente à empresa fornecedora dos kits, pela necessidade de atualização dos jogos durante a vigência do contrato. “A Smed não explicita seu entendimento sobre a proposta curricular da rede, ou os documentos que a embasam. Essa alteração curricular não é oriunda dos estudos e debates realizados na rede, mas efeito de uma obsolescência programada do próprio MenteInovadora. Além de importar para a rede pública, com custos elevados, materiais e metodologias produzidas externamente, e introduzir agentes privados que não têm compromisso com as comunidades escolares nem com a gestão democrática, a parceria prevê uma relação prolongada de dependência em relação à empresa que detém os direitos sobre o Programa”.
O diferencial do programa, segundo nota emitida pela empresa, é o “caráter integrador de várias contribuições, de diferentes autores (geralmente isoladas e parciais em outros materiais existentes) com sustentação teórica socio-interacionista, e a base teórica dos BNCC (Base Nacional Comum Curricular)”. A MindLab sustenta que “não há outra (metodologia) igual disponível no mercado, seja brasileiro ou de qualquer outra parte do mundo”.
As referências mencionadas pela empresa incluem Jean Piaget, David Ausubel e Paulo Freire, o que, segundo Elisabete Búrigo, evidenciaria a inconsistência do programa. “As menções são genéricas: aproximações do mesmo tipo valeriam para uma infinidade de outros materiais e propostas”, avalia a professora, que também critica a finalidade do projeto de garantir a “homogeneidade” das aulas ministradas e a justificativa de que os professores estariam desatualizados.
“Será mesmo que os professores são conservadores? O documento não apresenta nenhum diagnóstico sobre os currículos praticados nas salas de aula das escolas municipais. De fato, não conhecemos a origem da proposta ou a motivação inicial para a adoção do Programa MenteInovadora. Por isso, a proposta parece bastante artificial”, completou Búrigo.
Em nota, a MindLab assegurou que não apenas capacita mensalmente os professores para a aplicação do MenteInovadora, como também essa formação é constantemente avaliada pelos professores. Já os alunos realizam anualmente uma “Avaliação Socioemocional” para verificar o aprimoramento de habilidades e orientar o trabalho dos professores. A empresa ressalta que o MenteInovadora disponibiliza conteúdos alinhados com a nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC), atuando “na jornada educacional, cognitiva e socioemocional de 500 mil alunos e mais de 40 mil professores, sobretudo da rede pública de ensino, visando ainda reduzir as desigualdades na educação”.
Pesquisa de preços não considerou concorrência
Para dispensar licitação, a lei exige que o órgão público apresente um atestado de entidades comerciais, sindicais ou patronais, demonstrando que o material orçado tem fornecedor único no país. Procurada, a MindLab apresentou declarações de exclusividade da Câmara Brasileira do Livro (CBL) e da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo de São Paulo (Fecomércio-SP), documentos que embasam a compra feita pela Smed.
A pesquisa de preços da Secretaria de Educação não esconde, porém, ter considerado apenas a MindLab como fornecedora de material didático, a partir de pesquisas simples na internet: “Pesquisando pela empresa na plataforma Google, pode-se encontrar resultados sobre a empresa e seus serviços”. Na comparação por preços, apenas dois livros são citados como alternativas, mas são descartados por possuírem “objetivo pedagógico diferente aos interesses da Smed”.
A ausência de concorrência já havia sido apontada pela Procuradoria-Geral do Município. “A equipe técnica deve atestar expressamente que não existem outros kits pedagógicos de outras marcas que possam ser utilizados em substituição dos itens pretendidos”, escreveu o procurador Roberto Mota, exigindo pesquisa de mercado e aconselhando comparar preços cobrados pela MindLab a outras instituições.